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No Chile, a revolução é jovem

Da enorme renovação do Congresso, a maior desde o fim da ditadura, emergem lideranças na faixa dos 30 anos identificadas com o pensamento de esquerda

Cariola, Jackson, Boric e Vallejo: do movimento estudantil para o Parlamento
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A grande novidade política na América Latina vem da cordilheira dos Andes. E ela é jovem e de esquerda. O Chile surpreendeu o mundo, sobretudo o consórcio local entre a mídia e os institutos de opinião, com os resultados das eleições do domingo 19.

A mudança no tabuleiro político no país de 18 milhões de habitantes deve muito ao renascimento do movimento estudantil na virada da década passada. Entretanto, os números da nova força política surgida das urnas surpreenderam até os mais otimistas militantes.

A enorme renovação no Congresso, a maior desde a redemocratização, tem um forte viés jovem, esquerdista e feminino. E todos estes elementos atestam a amplitude histórica das jornadas que há poucos anos tiveram como principal símbolo Camila Vallejo, agora deputada reeleita pelo Partido Comunista.

Em relação à eleição presidencial, há mais de um ano e até poucos dias antes das urnas serem abertas, as pesquisas apontavam um quadro amplamente favorável ao conservador Sebastián Piñera: vitória no primeiro turno ou larga vantagem sobre qualquer adversário no segundo turno.

Piñera, que comandou o país entre 2010 e 2014, foi beneficiado por escândalos de corrupção e derrapagens econômicas que corroeram o capital político da presidenta Michele Bachelet, principal figura da aliança de centro-esquerda que perdeu apenas uma eleição após o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990.

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Apesar disso, o bilionário, com fortuna estimada em 2,7 bilhões de dólares em 2017, só alcançou pouco mais de um terço dos votos válidos (36,6%) num pleito marcado pela altíssima abstenção (54%). Em segundo lugar ficou Alejandro Guillier, candidato da situação, com 22,7%. E logo atrás veio Beatriz Sánchez Muñoz, da novíssima Frente Ampla, com 20,3%.

À parte José Antonio Kast, viúvo assumido de Augusto Pinochet que ficou em quarto lugar e amealhou 7,9% dos votos, os outros dois nomes relevantes para a votação de dezembro são oriundos da antiga Concertación, implodida após a derrota de 2009.

Carolina Boroevic, do Partido Democrata Cristão, de centro, obteve 5,9% do eleitorado, enquanto Marco Gumucio, do Partido Progressista, de centro-esquerda, foi o escolhido por 5,7% dos eleitores. Em tese, a maioria dos votos de Boroevic e Gumucio, assim como aqueles da Frente Ampla, deve migrar para Guillier. No caso da Frente Ampla, a possível adesão à campanha de Guillier seria um “apoio crítico” que se justificaria pela lógica do “mal menor” e pela coerência histórica.

Piñera esperava uma vitória fácil. Agora corre o risco de perder (Foto: Divulgação)

Do outro lado do espectro, Piñera só terá o voto do eleitorado de Kast se der uma guinada à direita no seu discurso, que buscava prioritariamente o eleitorado de centro.

Outro aspecto importante que poderá determinar o vencedor do balotage, termo usado nos países de língua espanhola para se referir ao segundo turno das eleições, será o nível do comparecimento, ainda que não se possa afirmar qual candidato seria mais beneficiado com um eventual aumento da participação, dada a baixíssima credibilidade da classe política chilena no atual momento. A piada corrente é que Piñera terá que meter a mão no bolso para “estimular” os eleitores.

Historicamente atormentado por terremotos por conta da geografia, o povo chileno sentiu em meados de 2016 os primeiros tremores do que viria a ser, nas recentes eleições, um tsunami não detectado sobre a política tradicional chilena. O descontentamento com a coalizão governista (alguns falam em “esgotamento”) gerou várias dissidências, sobretudo nos setores mais jovens da sociedade.

À frente da articulação que desaguou na criação da Frente Ampla estavam, entre outros nomes, Giorgio Jackson, 30 anos, e Gabriel Boric, 31, ambos deputados e ex-presidentes da entidade estudantil de suas universidades, respectivamente a Católica e a do Chile.

Aos dois se somou uma jornalista que fez carreira na cobertura política. Aos 46 anos, Beatriz Sánchez decidiu trocar o microfone das rádios pelo dos comícios. E fez isso num palanque eclético e heterogêneo: a Frente Ampla é composta por 13 partidos ou movimentos das mais diversas ideologias e correntes, embora todas de orientação progressista. Anarquistas, humanistas, socialistas, liberais, ecologistas, progressistas, além do Partido Pirata, Poder Cidadão, Nova Democracia, Revolução Democrática e Partido Igualdade, são alguns dos agrupamentos que compõem esse campo político que tem muita semelhança e diálogo com o Podemos da Espanha, mas toma emprestado o nome e o modelo da experiência que governa o Uruguai desde 2005.

O novo bloco obteve 20 vagas na Câmara e uma no Senado. A média de idade dos deputados e deputadas eleitos é de 38 anos. Destes, sete são mulheres, 15 possuem menos de 40 anos e 13 têm menos de 35 anos. Giorgio Jackson foi o deputado mais votado do país e o único que ultrapassou a marca dos 100 mil votos, o que lhe permitiu carregar mais dois colegas de chapa com baixa votação para a Câmara, com base nas regras que valorizam, tal qual no Brasil, o peso eleitoral dos partidos.

Do que sobrou da Concertación, a chapa “A nova maioria”, pela qual concorreu Guillier, elegeu 14 senadores e 43 deputados. Nesse âmbito, o Partido Socialista é majoritário e contará com 18 cadeiras na Câmara e seis no Senado.

Além de Camila Vallejo, 29 anos, o Partido Comunista colheu mais sete vagas na Câmara. Destaque para Karol Cariola, 30, também ex-dirigente estudantil, reeleita agora. O desempenho de ambas foi tão bom que cada uma “arrastou” um companheiro de chapa para a Câmara por meio do coeficiente eleitoral. A reeleição da dupla representa bem o avanço feminino na nova composição do Legislativo chileno: saem de 15,8% para 22,5%.

O êxito da geração de lideranças estudantis que sacudiu as ruas de Santiago com gigantescas manifestações nos anos recentes não se resume à entrada em peso no elitista e hermético Congresso. Um dos principais debates na primeira semana do segundo turno é justamente a proposta de garantir o ensino superior gratuito às famílias pobres. Inverter a hegemonia cultural e mudar a agenda de prioridades da sociedade chilena seria um feito que nem Salvador Allende logrou com a vitória de 1970.

Esse talvez seja o grande desafio no horizonte de Vallejo, Cariola, Jackson, Boric e muitos outros que, cada vez mais numerosos, poderão utilizar a tribuna do Parlamento quase como se estivessem nas assembleias estudantis.

*Rogério Tomaz Jr. é jornalista e vive em Montevidéu, onde escreve o livro “Conversando com Eduardo, viajando com Galeano”

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