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Projetos de extração ignoram populações locais

No Brasil, estudo aponta que 95% dos projetos estão em áreas habitadas

Em maio, indígenas ocuparam o gramado do Congresso brasileiro em protesto
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Em março de 2013, soldados da Força Nacional desembarcaram em Itaituba, no Pará, para garantir que pesquisadores prosseguissem com os estudos de impacto ambiental do Complexo Hidrelétrico Tapajós. O governo federal temia um conflito violento entre os trabalhadores e índios da etnia mundukuru, que se opõem ao empreendimento. O embate atrasou a construção da primeira hidrelétrica, orçada em 18 bilhões de reais. E caso dos mundukuru não é isolado.

No Brasil, desde 1999, 96% das licenças para exploração de petróleo e gás foram concedidas em áreas que eram habitadas previamente. No caso de extração madeireira, esse número chega a 100%. É o que mostra um estudo divulgado nesta quinta-feira 30 pela ONG Right and Resources Initiative (RRI) e pela consultoria The Munden Project.

Segundo a análise, não somente no Brasil, mas também em outros países tropicais, na maioria das vezes, a implantação de projetos de exploração de recursos naturais acaba em conflito. O estudo – publicado no Peru, onde a próxima Conferência do Clima será realizada em dezembro – aponta que entre 93% e 99% das concessões dadas nesses territórios envolvem terras já habitadas.

“Quando o governo vende terra, florestas ou outras fontes naturais e existem pessoas vivendo nesses locais, os conflitos se tornam inevitáveis”, comenta Andy White, coordenador da RRI, baseada em Washington.

O estudo considerou 73 mil concessões dadas em oito países emergentes desde 1999. Os autores sobrepuseram mapas de empreendimentos de mineração, extração de petróleo e gás, silvicultura e agropecuária a mapas cartográficos que indicam a presença de populações. Informações de satélites e fontes oficiais, como o Ministério de Minas Energia, no caso do Brasil, foram consultadas.

Além do Brasil, o estudo analisou a situação na Colômbia, no Camboja, em Moçambique, na Indonésia, na Libéria, no Peru e nas Filipinas.

Num planeta cada vez mais populoso e sedento por recursos naturais, é praticamente impossível um empreendimento se instalar numa área desabitada. “Olhando para o futuro, vemos que a pressão e a demanda por terra vão aumentar. Por isso, a necessidade de entender o problema e comunicá-lo a investidores e empreendedores. É a primeira vez que alguém olha para essa questão globalmente”, afirma Bryson Ogden, analista da RRI.

Nos oitos países analisados, o estudo avaliou 100 conflitos, buscando identificar alguns dos gatilhos que ativaram os embates. Alguns padrões foram observados em todos eles, como o de que as interações entre empresas e populações locais nem sempre são positivas. Muitas vezes, o gestor do empreendimento não leva em consideração a liderança local ou não trata os habitantes da forma como trataria um parceiro comercial.

“Temos interesse em ver como criar condições mais favoráveis a negócios nesses tipos de concessão. A ideia é pensar num modelo que consiga reduzir os riscos para as empresas”, afirma Leonardo Pradela, da consultoria privada The Munden Project e um dos autores do estudo.

Um dos casos mais violentos entre os analisados ocorreu em 2012, no Peru. Várias pessoas morreram e ficaram feridas em protestos contra a expansão da mina Yanacocha, a segunda maior do mundo em exploração de ouro. A Justiça ordenou que as atividades fossem interrompidas até que a situação se acalmasse.

No Brasil – onde foram analisados 33 casos de conflitos –, a violência foi menor do que nos demais países incluídos no estudo. A maior parte dos casos avaliados ocorreu na região Norte, como o que envolveu os índios mundukuru.

“Quando as coisas dão errado, dão errado mesmo, e demora muito para consertar”, diz Pradela. “Todos os casos que vimos, sem exceção, tiveram uma ação judicial. Nem sempre a solução jurídica funcionou.”

Em São Luís, no Maranhão, por exemplo, as empresas Baosteel, Posco e Thyssen-Krupp tiveram que mudar os planos de criação de um polo industrial. Comunidades de pescadores e quilombolas que habitavam o local se opuseram à ideia e conseguiram a anulação do projeto na Justiça, em 2013. A área foi transformada numa reserva extrativista.

No Brasil, o primeiro obstáculo para projetos de extração é a própria questão fundiária. Muitas vezes, a presença humana, principalmente na região amazônica, não é formalizada por um título de propriedade.

“O maior problema é que esses empreendimentos são feitos desprezando a presença dos moradores, desde populações tradicionais, como os ribeirinhos, até populações que estão ali de uma forma não documentada”, pontua Ubiratan Cazetta, procurador do Ministério Público do Pará – um dos mais ativos do país em ações que denunciam a violação dos direitos de populações tradicionais.

Foi justamente essa característica que levou a RRI e The Munden Project a se debruçarem sobre os países tropicais. “No mundo em desenvolvimento, o sistema de propriedade é, muitas vezes, diferente do modelo consagrado no mundo ocidental. Nesses países, não encontramos, necessariamente, uma propriedade individual, mas muitos lugares são de propriedade de comunidades, o que é complexo para algumas empresas”, afirma Ogden.

O desafio é tirar a invisibilidade dessas pessoas, considera Cazetta. “Elas precisam ser vistas como titulares de direito antes que a decisão final da implantação do empreendimento seja tomada. E depois é possível compatibilizar a convivência dos habitantes com o projeto.”

Para o procurador, falta o entendimento de que quando decisões administrativas, políticas e econômicas atingirem esses grupos, elas precisam de fato considerá-los. “E aí é uma questão de cultura. Cultura de tomada de decisão política que nós não temos e que, na minha visão, infelizmente, ainda estamos longe de ter”, finaliza.

  • Autoria Nádia Pontes
  • Logo DW

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