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Neofascismo pop

Seguindo a cartilha de Steve Bannon, o ultradireitista Javier Milei soube explorar os holofotes e desponta como favorito

Cordeiro. Visto com desconfiança pelo mercado, o extremista se apresentou como um candidato normal nos debates – Imagem: La Libertad Avanza
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A Argentina vive uma guerra de pesquisas às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, a contrastar com a calmaria aparente nas ruas de Buenos Aires. Não há carros de som ou panfletagens, a não ser espetaculosos atos de encerramento das principais campanhas na disputa mais dramática observada desde a queda da ditadura militar, há exatos 40 anos. Existem indicadores para todas as torcidas.

A RDT Consultores aponta a dianteira de Javier Milei, líder da extrema-direita abrigado na coalizão Libertad ­Avanza, com 36% das intenções de voto. Logo atrás vem Patricia Bullrich, de Juntos por el Cambio, ex-ministra de segurança de Mauricio Macri, com 25% e em terceiro, somando 22%, chega o atual ministro da Economia Sergio Massa, do Unión por la Patria, aliança peronista. Já a consultoria Atlas Intel apresenta outros números: Massa tem 30,6%, Milei 25,2% e Bullrich 25%. A DC Consultores, por sua vez, perfila Milei chegando a 35,6%, Bullrich com 28,9% e Massa estacionado em 26,2%.

Mesmo metodologias distintas não conseguem explicar a disparidade das porcentagens. Todas convergem, porém, em dois pontos. O primeiro é que nenhum dos candidatos atingirá 45%, ou 10 pontos, adiante do segundo, o que liquidaria a fatura na primeira volta. O segundo é que, em qualquer situação, Milei estará na ­disputa final, marcada para 19 de novembro.

O candidato extremista, economista e deputado eleito pela província de ­Buenos Aires em 2021, irrompeu na cena nacional a partir das Paso (eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), realizadas em 13 de agosto. A partir daí tomou gosto por declarações feitas sob medida para chocar o eleitorado, colocar adversários na defensiva e lacrar nas redes sociais e na mídia. À dolarização da economia, à demolição do Banco Central e à extinção da maioria dos ministérios, entre outras bizarrices, somaram-se petardos ao papa Francisco: “Imbecil que defende a justiça social”, “representante maligno” e “apoiador de ditaduras sanguinárias”.

A figura de Milei, sempre cuidadosamente despenteada, como o ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson, segue a cartilha de Steve Bannon, o ultradireitista ex-assessor de Donald Trump. Como observou Jeffrey Alexander, professor de Sociologia da Cultura na Universidade de Yale, não existe espaço para cortesia ou boas maneiras na cartilha de Bannon, que se especializou em dizer o indizível sobre minorias e populações vulneráveis, sempre em busca de holofotes. A lição é seguida por gente como Bolsonaro e Milei que, mais que lideranças, exercem o papel de ídolos pop do neofascismo.

O candidato argentino gaba-se de viver sozinho e de conversar em noites solitárias com seu falecido mastim Conan, o bárbaro dos gibis e dos filmes da Marvel. O figurino de candidato de multidões de desesperados pela pobreza, pelo desemprego e pela falta de perspectivas estava pronto. Diferentemente de Bolsonaro, que sempre exaltou a própria ignorância, ­Milei foi professor de Economia e exibe uma carreira de ponta no mercado financeiro.

Se Massa passar para o segundo turno, sua primeira tarefa será construir uma ampla frente democrática

Se a persona extravagante de Milei e suas propostas simples para problemas complexos, como no velho bordão, serviram para alavancar a popularidade de um candidato sem máquina partidária, exageros precisaram ser contidos quando o mundo dos negócios começou a levar a sério um possível governo do interlocutor de Conan. Há sérias hesitações empresariais sobre suas vantagens numa situação econômica altamente instável. A percepção expressou-se em quedas nas pesquisas em setembro.

Nos dois debates de campanha, ao contrário de Bolsonaro, Milei, em impecável terno azul-cobalto, tentou apresentar-se como um candidato normal. Não gritou, pediu desculpas ao papa e moderou o tom após aparecer em comícios exibindo uma serra elétrica ligada, em alusão aos cortes e privatizações que pretende fazer.

Milei é produto legítimo do caos produzido pela crise inflacionária e descontrole cambial, aliado à impotência oficial para realizar intervenções em uma economia endividada em dólar e com sérias dificuldades de acesso ao mercado internacional de crédito. Em 12 de outubro, o Banco Central elevou a taxa de juros de 118% para 133% ao ano. Com inflação ­anual de 138,3%, a taxa real permanece, por enquanto, pouco acima de 5%. Na raiz da crise, entre outras causas, estão as condições draconianas impostas pelo FMI para conceder um empréstimo de 57 bilhões de dólares, o maior da história da instituição, em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.

Diante do desastre que derrete a moeda nacional, eleva o desemprego e provoca empobrecimento generalizado, em especial nas províncias, Milei e Bullrich encontram discurso fácil, seguido de apelos ao endurecimento da repressão à violência crescente. Sergio Massa consegue um tento ao mostrar-se competitivo, exercendo a um só tempo o papel de comandante e crítico da situação. Com certa licença poética, pode-se comparar seu papel ao de José Serra em 2002. Nas eleições presidenciais daquele ano, vencidas por Lula, ele teve a árdua tarefa de apontar o dedo contra a elevação do desemprego e da inflação numa administração que integrara até as vésperas da campanha.

Nas eleições de domingo estarão também em disputa os governos de 21 das 23 províncias e da Cidade Autônoma de ­Buenos Aires. Na província de mesmo nome vivem 40% dos argentinos e, ao que tudo indica, o peronismo deve vencer tanto as eleições regionais quanto a nacional. As coligações de Massa e Bullrich têm mais chances de eleger governos provinciais, apesar da dianteira de Milei na maioria delas. Serão também renovadas 130 cadeiras da Câmara dos Deputados e 24 do Senado.

Qualquer que seja o resultado deste primeiro turno, o certo é que as intenções de voto mostram que a Argentina se inclina para a direita. Se Massa passar para o segundo turno, a construção de uma ampla frente democrática, a exemplo do que fez Lula, será sua tarefa principal a ser cumprida a partir da próxima segunda-feira, 23 de outubro. •


*Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa Brasileira (Opeb).

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Neofascismo pop’

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