Mundo
Negacionismo oficial
Em meio a surtos de sarampo e coqueluche, o secretário de Saúde, Robert Kennedy Jr., embala o movimento antivacina no país


A saúde pública nos EUA equilibra-se entre elevados custos, baixa cobertura e políticas voláteis. Sem um sistema único e gratuito, o país convive há décadas com uma epidemia de opioides e serviços fragmentados: consultas superam 100 dólares, planos passam de 300 e internações custam milhares. Em julho, o presidente Donald Trump deu sua contribuição para agravar a crise ao sancionar a lei One Big Beautiful Bill, que deve retirar 1 trilhão de dólares de programas de assistência médica, como o Medicaid, para compensar cortes de impostos e aumento dos gastos em Defesa.
Trata-se da maior redução do apoio federal à saúde na história do país. Estima-se que 10 milhões de indivíduos em situação de vulnerabilidade social fiquem sem cobertura de seguro-saúde, além de perderem o acesso à assistência alimentar. Em novembro de 2024, Trump já havia anunciado que concederia amplos poderes ao secretário Robert F. Kennedy Jr. para “enlouquecer com a saúde”. Desde que foi confirmado pelo Senado para assumir a pasta, em fevereiro deste ano, o auxiliar tem cumprido à risca a determinação, com sua agenda do Make America Healthy Again.
As erráticas decisões de RFK Jr. têm causado constrangimento até para lideranças do Partido Republicano, além de provocar o ressurgimento de moléstias que, até pouco tempo, estavam erradicadas. Os EUA enfrentam o maior surto de sarampo dos últimos 20 anos, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). De janeiro a agosto de 2025, foram confirmados mais de 1,4 mil casos no país, a maioria no Texas, e três mortes. A coqueluche é outra doença que vem se alastrando: matou ao menos dois bebês na Louisiana e uma criança de 5 anos no estado de Washington. Mais de 19 mil casos de infecção foram registrados até 23 de agosto, quase 2 mil a mais do que no mesmo período do ano passado. No entanto, em vez de incentivar a vacinação, especialmente entre crianças, o secretário de Saúde adotou um pronunciamento hesitante, repleto de ressalvas quanto à eficácia e à confiabilidade dos imunizantes, valendo-se de dados distorcidos, incompletos ou manipulados pelo movimento antivacinas.
Defensor da ideia de que os pais têm o direito de recusar a imunização dos filhos, RFK Jr. encorajou o secretário de Saúde da Flórida, Joseph Ladapo, a pôr fim à obrigatoriedade de vacinas nas escolas do estado. A medida, referendada pelo governador Ron DeSantis, deve entrar em vigor em 90 dias. Segundo o CDC, a Flórida lidera o aumento de casos de hepatite A e catapora nos EUA. Durante entrevista à rede de tevê CNN, no domingo 7, Ladapo foi questionado se sua equipe havia realizado algum estudo sobre os efeitos da remoção dos mandatos de vacinação antes de tomar a decisão. “De jeito nenhum”, respondeu sem hesitar. “Eu preciso analisar se é apropriado que os pais possam decidir o que entra no corpo dos filhos?”
Até mesmo Trump, que não prima pela cautela, considerou a decisão precipitada. “É preciso ter muito cuidado ao dizer que algumas pessoas não precisam ser vacinadas”, ponderou o presidente durante uma conversa com jornalistas no Salão Oval da Casa Branca. “A vacina contra a poliomielite é incrível. E veja: existem imunizantes que, pura e simplesmente, funcionam. Não são controversos. Essas vacinas devem ser usadas. Caso contrário, algumas pessoas vão contrair a doença e colocar outras em risco.”
A Flórida suspende exigência de vacinas nas escolas. Outros estados se unem para difundir orientações baseadas na ciência
RFK Jr. não parece disposto, porém, a fazer concessões. Recentemente, cortou 500 milhões de dólares em contratos governamentais destinados a pesquisas com RNA mensageiro – tecnologia responsável, por exemplo, pela vacina contra a Covid–19 e por tratamentos de diversos tipos de câncer. O secretário também anunciou que os imunizantes contra o Coronavírus não serão mais recomendados para crianças saudáveis ou adultos com menos de 65 anos. A partir de agora, em muitos estados, será necessário apresentar receita médica para adquirir a vacina nas farmácias.
Durante uma audiência pública na Comissão de Finanças do Senado, no início de setembro, Kennedy Jr. esquivou-se das perguntas sobre a demissão de Susan Monarez – então diretora do CDC, confirmada pela Casa Legislativa um mês antes – e de outros 17 membros do painel de especialistas que assessoravam o órgão. “Ela não era confiável. Preciso de alguém em quem possa confiar a saúde da América”, justificou o secretário, ao apontar o CDC como “o grande responsável” pelo aumento das doenças no país. “Eles não fizeram o trabalho deles, que era nos manter saudáveis.”
Em um dos momentos mais incisivos, Kennedy Jr. afirmou que os norte-americanos “foram enganados sobre tudo” durante a pandemia, insinuando que estatísticas teriam sido manipuladas. Questionado sobre as mais de 1,2 milhão de mortes por Covid–19 reconhecidas no país, respondeu que “ninguém sabe ao certo” a real dimensão do impacto, provocando reação imediata dos senadores, que rebateram seus argumentos com dados científicos. A democrata Elizabeth Warren foi enfática: “Você está colocando em risco a saúde dos bebês, dos idosos, de toda a população. Isso exige responsabilidade – e talvez até a sua renúncia”.
A queda nas taxas de vacinação nos EUA, impulsionada pela extrema-direita e pelo trumpismo, tem revertido conquistas históricas e ameaçado a imunidade coletiva. Especialistas alertam que surtos de sarampo e coqueluche são consequência direta do enfraquecimento das políticas de saúde pública. “Salvamos ao menos 154 milhões de vidas com vacinas nos últimos 50 anos”, lembrou o republicano Bill Cassidy, presidente do Comitê de Saúde do Senado. Outro senador do partido, também médico, John Barrasso, criticou RFK Jr.: “O senhor prometeu manter os mais altos padrões de vacinação para ser confirmado pelo Senado. Desde então, estou profundamente preocupado. Os norte-americanos não sabem em quem confiar”.
Em reação aos desvarios do secretário, o Havaí uniu-se à Califórnia, Oregon e Washington na West Coast Health Alliance, que busca divulgar diretrizes unificadas e baseadas em evidências científicas. Em declaração conjunta, o grupo classificou a demissão de cientistas do CDC como “um ataque direto à saúde e à segurança do povo norte-americano”. No próximo dia 17, o Senado ouvirá Susan Monarez em audiência para esclarecer sua saída. Democratas prometem pressionar RFK Jr., mas todos sabem que o desafio vai além dos surtos: o cerne do problema parece ser a frágil confiança na ciência, doença para a qual ainda não se inventou um remédio. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Negacionismo oficial’
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