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Nascido para matar

Peter Hegseth, secretário da Guerra dos EUA, jacta-se do assassinato de náufragos nos arredores da Venezuela

Nascido para matar
Nascido para matar
Às favas os escrúpulos. Hegseth bate no peito e transforma a ilegalidade em padrão de comportamento. Precisa torcer para a maré não se voltar contra ele – Imagem: Madelyn Keech/Força Aérea dos EUA e Redes Sociais/Pentágono
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Até hoje, a reação de todo político, ao ser flagrado em um crime, sempre foi negar. Mas mesmo esse mandamento básico, contido em toda cartilha política e aplicável a qualquer governante do mundo, foi virado de cabeça para baixo. Na lógica da nova extrema-direita populista, a resposta a um flagrante passou a ser a confissão orgulhosa e desafiadora da autoria do crime.

O secretário da Defesa dos Estados Unidos tem sido exemplar na nova postura. Pete Hegseth foi confrontado com um vídeo no qual militares norte-americanos executam a sangue-frio dois náufragos agarrados aos destroços de uma embarcação à deriva no Mar do Caribe. Os assassinatos, em 2 de novembro, foram gravados pelas próprias forças dos EUA. O vídeo, ainda mantido sob sigilo, mas visto e amplamente comentado por parlamentares democratas e republicanos, mostra um primeiro ataque aéreo contra a embarcação. As explosões fazem subir uma nuvem de fumaça. Passados 30 minutos, dois náufragos aparecem agarrados à proa do barco, parcialmente submersa. Em vez de recolher os sobreviventes, os militares disparam contra eles.

Não há nenhuma lei marítima ou mesmo da guerra que autorize uma força a executar náufragos indefesos à deriva no mar. Mesmo no caso de combatentes, as regras determinam que eles sejam resgatados e tratados com humanidade, desde que não perpetrem outras ações hostis. Hegseth e seus comandantes militares não apenas se defendem, mas se jactam do que fizeram. Dias depois da operação, o secretário publicou em suas redes sociais a paródia de um livro infantil na qual a sorridente tartaruga Franklin aparece a bordo de um helicóptero disparando uma bazuca contra barcos no Mar do Caribe. O personagem é um clássico da literatura infantil norte-americana e canadense, convertido em desenho animado exibido no mundo todo, inclusive no Brasil. Na visão pervertida de Hegseth, a paródia deveria constar nas listas de pedido de Natal, como escreveu no post.

No mundo real, a tartaruga Franklin seria julgada numa corte marcial e condenada por executar náufragos. Mas, no mundo em que vivem Hegseth e todo o gabinete do presidente Donald Trump, as violações são motivo de orgulho. Foi assim na tentativa de golpe de Estado, durante a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e continua a ser agora, na implementação de uma agenda política surreal, respaldada por mais de 75 milhões de eleitores, para os quais uma piada com livro infantil é a resposta adequada diante de duas execuções documentadas.

A operação em curso no Mar do Caribe é contestada legalmente. As ações que levaram à destruição de 20 embarcações e à morte de 87 tripulantes até o momento partem de uma premissa contestável, a de que os Estados Unidos podem declarar-se em guerra contra cartéis de drogas. Guerras são declaradas, em primeiro lugar, contra Estados. Quando se trata de grupos criminosos, não ligados às Forças Armadas regulares de nenhum país, a via legal pressupõe a realização de operações de perfil policial, baseadas no uso de inteligência, com cerco a movimentações financeiras e julgamentos seguidos de condenações, não de execuções a sangue-frio contra feridos e desarmados.

Alguns críticos da ação têm mencionado a Segunda Convenção de Genebra de 1949 como o documento legal que versa sobre náufragos em batalhas marítimas, mas mesmo a evocação desse documento é um erro, pois seria um reconhecimento indevido de que Estados podem declarar guerra contra meras facções criminosas. Essa mesma lógica distorcida embala, no Brasil, os políticos que tratam a criminalidade no Rio de Janeiro como um caso de guerra para justificar ações como aquela que, em 28 de outubro, terminou com 121 mortes nos complexos da Penha e do Alemão. Tanto num contexto quanto noutro, as execuções são proibidas pela regra internacional dos direitos humanos, um conjunto de normas muito mais abrangentes e protetoras do que a legislação extremamente excepcional aplicada em guerras.

Em vez de negar o crime, o republicano fez piada das mortes a sangue-frio

No caso norte-americano, a ilegalidade vem de origem. Trump rebatizou o cargo do secretário da Defesa para o de “secretário da Guerra”. Há uma razão pela qual ninguém no mundo chama o responsável pelo comando de suas Forças Armadas de secretário ou de ministro “da Guerra”. Desde 1945, a Carta da ONU proíbe o recurso à guerra nas relações entre os Estados. A única via legal para o uso da força é a legítima defesa contra uma agressão ilegal. Daí o nome Ministério “da Defesa”, em vez de “da Guerra”. Nada disso importa, porém, quando a intenção é, de fato, bancar a ilegalidade, usando-a como ameaça ilimitada contra os adversários.

No caso do Caribe, o inimigo proclamado é o tráfico de drogas. Mas, no fundo, as operações apontam para a velha receita de mudança de regime, como demonstram as ameaças explícitas de invasão da Venezuela sob pretexto de retirar Nicolás Maduro do poder e derrotar os cartéis locais. A despeito de toda crítica legítima a Maduro, o uso internacional e unilateral da força para remover um presidente, sem aval do Conselho de Segurança, é ilegal.

Fosse o narcotráfico a principal preocupação, Trump não teria indultado, em 1º de dezembro, o ex-presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, condenado a 45 anos de cadeia nos Estados Unidos por ter participado de “uma das maiores e mais violentas conspirações de tráfico de drogas no mundo”, segundo a Justiça local. Para Trump, Orlando­ ­Hernández foi vítima de uma “caça às bruxas” movida pelo governo de seu antecessor, o democrata Joe Biden. O curioso sobre esse caso é que o ex-presidente hondurenho fez chegar a Trump uma carta com pedido de perdão, entregue por Roger Stone, assessor de longa data de Trump, a quem o presidente norte-americano certamente deve muitos favores.

Agora, Hegseth e Trump estão, provavelmente, inalcançáveis pela Justiça internacional por seus crimes, pois os EUA nem sequer reconhecem a jurisdição de instâncias como o Tribunal Penal Internacional. Mas não se descarta o risco de que sejam julgados pela própria Justiça dos EUA, se um dia caírem em desgraça. Ambos, certamente, empurrariam a responsabilidade para seus subalternos militares, o almirante Frank Mitchell­ ­Bradley e o coronel Dan Caine.

No estágio atual, as investigações sobre as ações no Mar do Caribe estão ainda nas mãos do Comitê Misto de Inteligência do Congresso norte-americano, onde as opiniões são divididas. Enquanto a maioria dos republicanos, com poucas exceções, veem nos ataques exemplos de legalidade e de cumprimento do dever, os democratas falam em uma ação repugnante e abjeta, que precisa ser investigada até o fim. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nascido para matar’

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