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Não olhem para cima

Um meteoro aproxima-se do Partido Conservador nas eleições do Reino Unido. Será o fim?

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Fundo do poço. Sunak herdou uma situação calamitosa e conseguiu piorá-la. Muitos correligionários gostariam de ver o premier pelas costas antes da eleição de 4 de julho – Imagem: Partido Conservador e Phil Noble/AFP
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Em parte, como preparativo para o pior, em parte, como forma de encontrar esperança para o longo prazo, um livro tornou-se leitura popular de políticos conservadores britânicos na hora de dormir. Intitula-se Full Circle: Death and Resurrection in Canadian ­Conservative Politics (Círculo Completo: Morte e Ressurreição na Política Conservadora Canadense). Escrito pelo autor e historiador canadense Bob Plamondon, ele acompanha a destruição e a experiência de quase morte do Partido Conservador Progressista, de centro-direita, nas eleições gerais de 1993, quando deixou de ter maioria na Câmara dos Comuns do país e perdeu todos os assentos, menos dois. Seguiram-se muitos anos sombrios antes que uma fusão e mudança de nome lhe permitissem voltar ao reconhecimento e, enfim, recuperar o poder em 2006, num dos mais notáveis renascimentos políticos dos últimos tempos.

Mesmo antes do erro desastroso do primeiro-ministro Rishi Sunak, na quinta-feira 6, quando voltou para o Reino Unido mais cedo das comemorações do Dia D na França com veteranos e líderes mundiais para conceder uma entrevista, depois de insistir que a política estava suspensa naquele dia, comparações com a experiência canadense eram traçadas. Será que o Partido Conservador da Grã-Bretanha poderia ser praticamente eliminado de modo semelhante, perguntam-se agora os filiados. Nesse caso, quais as probabilidades de um partido anteriormente aniquilado ressurgir das cinzas?

Os tories parecem girar cada vez mais rápido num redemoinho mortal, enquanto o Partido Trabalhista reforça sua liderança nas pesquisas e se apresenta como futuro governo. No fim de um serviço religioso emocionante no Memorial da Normandia Britânica, perto de ­Ver-sur-Mer, Keir Starmer, o candidato trabalhista, concordou com uma breve entrevista com emissoras nos gramados com vista para a Praia Gold, onde ocorreu o desembarque aliado durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de ser solicitado a dar sua opinião sobre os acontecimentos de 80 anos atrás, Starmer foi pressionado pelos jornalistas a respeito das últimas novidades da campanha para as eleições gerais e as disputas sobre impostos com Sunak. O líder trabalhista recusou-se a responder. Aquele dia, disse aos repórteres, era para os veteranos, não para marcar pontos políticos. Foi questionado mais uma vez e, novamente, optou por não cobrar o pênalti. Sua próxima parada foi a comemoração internacional na Praia de Omaha.

A depender da derrota, haverá pressão por uma fusão com os extremistas do Reforma UK

Enquanto isso, Sunak havia se despedido e tomado o avião para casa, escapando para dar uma entrevista a Paul Brand, da ITV, que pode tornar-se mais um golpe em suas chances de reeleição. Na manhã seguinte, o porta-voz da defesa do Partido Trabalhista, John Healey, conseguiu colocar a bola na rede, enquanto os veteranos acusavam Sunak de decepcionar o país. “Como o primeiro-ministro tem feito campanha sobre a ideia de que os jovens deveriam cumprir um ano de serviço nacional, o que significa o fato de ele, ao que parece, não ter completado uma única tarde desse serviço?” Dificilmente poderia ter sido mais contundente.

Incrivelmente, a capacidade de Sunak para liderar os conservadores até o dia das eleições, em 4 de julho – e muito menos depois disso –, agora é questionada por alguns do seu próprio lado. Os candidatos conservadores e o pessoal em campanha para salvar seus assentos estão além do desespero. Um deles disse na sexta-feira 7: “Se você tivesse tentado escolher uma questão para perturbar meus eleitores, não poderia ter escolhido uma melhor”. Na manhã de sexta, o ex-assessor especial conservador Sam Freedman revelou como a conversa sobre a substituição de ­Sunak antes da eleição estava se espalhando entre seus amigos e seguidores no X: “Recebi várias mensagens esta manhã perguntando se há algum precedente, em algum país, de um líder de um grande partido ser substituído durante uma campanha. Não consigo encontrar um”.

Rob Ford, um dos principais especialistas em intenções de voto e tendências, diz que os resultados das pesquisas mostram que “um asteroide eleitoral está atravessando a atmosfera” e dirige-se para o núcleo dos conservadores. Ford não considera impossível que os conservadores acabem com menos de cem assentos, pois sua campanha erra o alvo e tanta confiança se perdeu ao longo de 14 anos e nos mandatos de cinco primeiros-ministros. Outros especialistas em pesquisas dizem que, diante da dispersão geográfica do voto conservador e da natureza brutal do sistema eleitoral por maioria simples, uma vez que seus votos caiam para a faixa inferior dos 20%, o número de assentos poderá cair para dois dígitos – e chegar a apenas 20.

Se arrependimento matasse… Os britânicos agora lamentam a intempestiva decisão de sair da União Europeia. Os custos foram altos, os ganhos, nulos – Imagem: Redes sociais

No mesmo dia, Nigel Farage, líder do partido de extrema-direita Reforma UK, anunciou a intenção de concorrer em Clacton-on-Sea e liderar a legenda nos próximos cinco anos. Todos os candidatos conservadores souberam instantaneamente que o voto da direita em sua área tinha agora muito maior probabilidade de se dividir, dificultando o trabalho de manter assentos. “Raramente um partido pode ter recebido dois golpes desse tipo numa tarde”, disse o guru das eleições John Curtice. “Infelizmente, para os conservadores, a maior parte da força recebida do Reforma vem daqueles que apoiaram o apelo pró-Brexit de Boris Johnson em 2019, muitos dos quais provavelmente reverteriam para os conservadores se o Reforma não fosse uma opção agora.”

Um sinal revelador da implosão da campanha foi a forma como os conservadores se dispuseram repentinamente a atacar seu próprio líder, por estarem tão desiludidos e desesperados. Quando Sunak tentou refutar as alegações de que havia mentido sobre os planos fiscais do Partido Trabalhista, Fraser Nelson, editor da revista Spectator, que apoiava os conservadores, pareceu ficar mais do lado dos trabalhistas do que do premier. “Há questões sérias em jogo nestas eleições gerais e os conservadores acabaram de divulgar números absurdos com atribuições falsas e entregá-los a jornais que confiaram neles”, escreveu Nelson. “Realmente, não tenho certeza se isso ajudará muito em suas chances.”

Assim, com a campanha quase a descarrilar, as pesquisas recusando-se a mudar, Farage ameaçando dividir o voto da direita e o moral a cair, para onde irão os conservadores em caso de humilhação, ou mesmo de aniquilação?

Os tories são cada vez menos um partido de centro-direita

Existem várias teorias, a depender da gravidade da derrota, embora ninguém saiba realmente e poucos queiram divulgar o que pensam. O ex-ministro conservador David Gauke acredita que, provavelmente, as expectativas serão ruins para os conservadores na noite das eleições e que o partido então oscilaria drasticamente para a direita. “Meu medo é, especialmente se o Reforma for bem-sucedido e Nigel Farage for eleito deputado por Clacton, que os instintos de grande parte do Partido Conservador sejam que precisamos ceder a isso, precisamos unir a direita, formar uma aliança, se não uma fusão com o Reforma, e é para onde o Partido Conservador deverá ir.” Se isso acontecer, diz Gauke, “acho que o Partido Conservador renunciará ao menos por uma geração, possivelmente para sempre, à sua posição outrora mantida como o partido natural do governo, o partido das classes médias, dos condados mais próximos da capital, das empresas”.

Ele acredita que a ex-secretária do Interior Priti Patel poderia surgir como a nova líder conservadora, fechar algum tipo de acordo com Farage e convidar Boris Johnson de volta ao partido parlamentar. Patel, diz, mantém melhores relações com Johnson do que outros possíveis candidatos à liderança da direita, como Suella Braverman, Kemi Badenoch e Robert Jenrick. Ela também tem diálogo com Farage. “Há muito tempo previ que Patel lideraria o partido após as eleições gerais, apoiando-se numa plataforma de união da direita, de buscar algum tipo de acomodação com Nigel Farage, de querer trazer de volta Boris Johnson ao partido parlamentar”, diz Gauke. “Uma das questões políticas fascinantes no mundo pós-eleitoral será a relação de Nigel Farage e Boris Johnson, e talvez não seja possível para um partido conter os dois, mas penso que ela tentará encontrar um caminho.”

Tim Bale, professor de política na ­Queen Mary, Universidade de Londres, autor de uma extensa pesquisa sobre a provável aparência política do Partido Tory em caso de derrota, diz que num cenário de pesadelo, onde ganhe apenas cerca de cem assentos, a legenda parlamentar que surgiria seria “mais meridional, mais esperta, mais educada em ­Oxbridge e, muito possivelmente, um pouco mais representativa, embora ainda não muito, das minorias étnicas, bem como das mulheres”. Aonde isso levaria a agremiação não está claro para ele, nem para qualquer outro analista. Bale diz que sempre rejeitou a ideia de que os tories pudessem falir e simplesmente desaparecer, mas agora pensa que alguma reconfiguração radical poderá acontecer. “Embora falar sobre os conservadores enfrentarem uma ‘ameaça existencial’ ou ‘saírem do mercado’ tenda a me fazer pegar o meu revólver, eu não descartaria totalmente as chances de tal aquisição, hostil ou não”, diz. “Uma combinação tóxica de Brexit, Boris ­Johnson e um ecossistema midiático de direita cada vez mais histérico, juntamente com uma adesão popular altamente não representativa que, no entanto, tem a palavra final na escolha do líder da legenda, empurrou o partido para se tornar populista de direita radical, em vez de um grupo de centro-direita da corrente dominante.”

Fênix. Há quem projete a ressurreição política de Johnson – Imagem: Andrew Parsons/10 Downing Street

Ryan Shorthouse, presidente do grupo de análises Bright Blue, que promove o conservadorismo liberal, diz que se o Reforma for bem-sucedido “alguns pressionarão por algum tipo de fusão” e que “alguns na direita conservadora sentirão que é o lugar certo para eles”. Isso poderia, no entanto, deixar uma proporção maior de conservadores de “uma nação” (pró-assistencialismo social, “paternalistas”) no partido parlamentar, que não gostariam de escolher um líder de direita para suceder a Sunak. “A lição de Rishi é que se mover para a direita é a abordagem errada, então minha opinião é que os parlamentares serão mais paternalistas e escolherão alguém mais de sua convicção.”

À medida que as coisas vão de mal a pior durante a campanha, a maioria dos conservadores está preparada para a aniquilação. Mas ninguém sabe como, ou se, o partido poderia sobreviver, após a colisão do asteroide, em alguma forma semelhante à sua atual – ou se os conservadores poderão de algum modo se reinventar, como aconteceu no Canadá. •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não olhem para cima’

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