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Não deixe o mapudungun morrer

Para manter vivo o idioma mapuche Héctor Mariano se divide entre dois trabalhos: professor e encanador na maior universidade do Chile

Alunos, fluentes em mapudungun, militaram pelo reconhecimento do curso
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Os olhos negros e profundos analisam de maneira minuciosa o problema. As mãos pequenas e grossas arregaçam as mangas da camiseta social, que são dobradas de maneira lenta e metódica até o antebraço. Héctor Mariano, 40 anos, especialista em mapudungun (idioma mapuche) da Universidade do Chile, para, pensa, analisa. Após alguns minutos estudando, o veredito é claro: a válvula de descarga do vaso sanitário do banheiro masculino da faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade do Chile precisa ser trocada.  

Após efetuar o trabalho manual, caminha a uma pequena sala improvisada, localizada frente ao banheiro masculino e ao lado do departamento de linguística, onde o indígena divide o espaço com ferramentas de ferro, como martelos e chaves-de-fenda, e livros teóricos, como Noam Chomsky e Roman Jakobson. “Adoro ler. A leitura foi essencial para que eu aprendesse o castelhano, embora ainda tenha alguma dificuldade”, fala em tom baixo, porém firme, num espanhol claro e fluente. Monolíngue em mapudungun até os 10 anos, aprendeu o espanhol quando um grupo de pedagogos chegou ao povoado Kurako Rankil, na Araucanía, no sul do país.

Aos 20 anos e com uma vasta sabedoria aprendida pela vivência na tribo, que varia desde a técnica em curar animais de grande porte até noções de arquitetura, migrou para Santiago onde um amigo o indicou para trabalhar como jardineiro na Universidade. “Tive muita sorte. Tinha dificuldades com o castelhano e pensei que estaria destinado a ‘bicos’”, diz. Solitário nos labores e incômodo com o individualismo característico da metrópole, decidiu resgatar o senso de comunidade no qual foi criado pelas duas avós. Venceu a timidez serena que o adjetiva e se aproximou de um jovem, que tinha uma aparência física similar. “Você é mapuche?”, perguntou. “Mapuche? Você está louco? Porque você está me dizendo isso?”, respondeu o jovem de súbito frente aos muros grafitados com dizeres de Paulo Freire e Salvador Allende. “Num primeiro momento fiquei muito envergonhado das minhas origens. Mas o episódio foi importante para perceber o quanto meu povo está enraizado em mim”.

População Mapuche ‘A língua é a ferramenta mais importante de uma cultura’, salienta Mariano

A resposta do aluno não soou indelicada somente aos ouvidos do jardineiro, já que se alastrou e reacendeu o sangue tarimbeiro dos alunos mestiços indígenas, que formaram um esquadrão de estudantes de linguística, sociologia e história. “Eu ensinava o mapudungun e eles me ensinavam gramática e algumas teorias das ciências que estudavam. Isso me fez perceber que atualmente é impossível ensinar a língua de maneira falada, como aprendi. É preciso ter uma metodologia”. 

Após cinco anos na clandestinidade, transitando entre o papel de aluno e mestre nos horários livres, Héctor não apenas adquiriu uma base teórica humanista respeitável e a fluência no castelhano, como reviveu o senso de comunidade que tanto sentia falta. Os alunos, fluentes em mapudungun e encantados com a experiência, militaram pelo reconhecimento do curso pela universidade. “A língua é a ferramenta mais importante de uma cultura. Foi então que decidimos que era hora de lutar pela formalização da oficina”, fala. 

Como Héctor Mariano cursou escola indígena até o ensino básico, seus conhecimentos em Saussure e Levy-Strauss se tornaram inúteis para os olhos burocratas da instituição. “Parece que eu meti a língua a força aqui. Eles falam que é preciso ser uma universidade ‘multicultural’, mas que tipo de cultura querem trazer?”, pergunta. A petição dos alunos, que causou certa divergência no departamento da faculdade, foi atendida há quinze anos com o reconhecimento da “Oficina de língua e literatura mapuche”.  

Contudo, tornar-se professor titular de uma das melhores universidades da América Latina está mais próximo da utopia que da realidade. Mesmo após a publicação de cinco livros, o trabalho de mais de dois anos capacitando professores na cidade e no campo e da participação em diversas pesquisas acadêmicas, Héctor Mariano ainda assina como “encanador” em seu contrato de trabalho. Determinado, mas não menos insatisfeito, ele não pensa em mudar de trabalho. “Se o mapudungun não for reconhecido na universidade, que outra forma será incorporado no sistema? Eu sou mapuche, sou um povo guerreiro e minha luta é com o jovem que tem o direito de aprender”. O curso é composto por três níveis, que duram três meses cada, e custa $20 mil pesos chilenos (cerca de R$80) por módulo. “Não gostaria de cobrar, mas preciso pagar o ônibus”, finaliza.

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