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Nacionalismo em alta

O Sinn Féin, antigo braço político do IRA, tem grandes chances de governar a Irlanda do Norte

Dianteira. Michelle O’Neill, do Sinn Féin, caminha para se tornar a primeira líder nacionalista a governar o país - Imagem: Kelvin Boyes/Sinn Féin
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Tambores, flautas e o ruído de pés ressoaram pela Irlanda do Norte na última rodada de protestos contra o protocolo que impõe verificações de produtos que cruzam o mar como parte do acordo do Brexit. Na quinta-feira 21, os manifestantes desfilaram em ­Castlederg, na sexta no leste e norte de Belfast, e no sábado à noite eram esperados em Derry. Essas paradas começam antes do anoitecer e atingem o clímax com discursos quando a noite cai, como que para se equiparar aos avisos sobre a ameaça de esquecimento político.

A Irlanda do Norte realizará uma eleição para a Assembleia de Stormont em 5 de maio, que muitos manifestantes consideram uma batalha não só pelo protocolo, mas pela posição da Irlanda do Norte no Reino Unido. Eles temem que a existência do Estado, e com ele sua cultura e identidade, esteja ameaçada. As promessas de Downing Street de “reformar” o protocolo e adiar as checagens nas fronteiras não aliviaram a preocupação – os unionistas sentem que já ouviram isso antes.

Se as pesquisas estiverem corretas, o Sinn Féin sairá como o maior partido, o que abrirá a oportunidade de Michelle O’Neill ser a primeira-ministra e a primeira líder nacionalista da região. Para os manifestantes, será uma afronta sem precedentes que poderá azeitar ainda mais a queda em uma Irlanda unida. O Sinn Féin tenta dissolver a Irlanda do Norte. O partido rejeita até seu nome, referindo-se em vez disso ao “norte”. Os dados demográficos alimentam a ansiedade unionista. Os católicos deverão em breve superar em número os protestantes.

O partido lidera as pesquisas. As eleições parlamentares acontecem em 5 de maio

O desafio permeia os protestos, que se arrastam há um ano. Um dos maiores foi realizado em Lurgan, no condado de ­Armagh. Anunciado como uma demonstração de força com convites a 60 bandas e mais de 10 mil participantes, os manifestantes lotaram ruas com nomes reais típicos das cidades fundadas por colonos protestantes no século XVII. “Ainda estamos sob o domínio europeu e somos cidadãos britânicos”, disse Andrew Hamill, de chapéu-coco e faixa, enquanto os tambores começavam a soar. “É a ladeira escorregadia para uma Irlanda unida. Tudo é possível.” Scott ­Wilkinson, 25 anos, enfeitado com distintivos comemorativos dos regimentos do Ulster na Primeira Guerra Mundial, disse que o governo de Boris Johnson traiu seu sacrifício. “É como o dedo do meio para eles. Eles lutaram para que pudéssemos ser unidos.” A Inglaterra, disse ele, parece não se importar com os unionistas. “Eles estão tentando se despedir de nós, apesar de querermos fazer parte deles. É muito perturbador.”

A Irlanda do Norte está à beira de uma eleição com implicações potencialmente importantes. As lamúrias sobre a união em risco atraem, no entanto, apenas um público insignificante. Duas realidades desenrolam-se simultaneamente. Aqueles que se opõem com violência ao protocolo mantiveram o tema central, com denúncias e, em alguns casos, ameaças de violência. No mês passado, uma farsa de bomba da Força Voluntária do Ulster forçou a evacuação do ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, de um evento em Belfast. A Associação de Defesa do Ulster, outro grupo paramilitar, disse que também terá como alvo o governo irlandês. A contagem regressiva para uma possível vitória eleitoral do Sinn Féin ressalta a percepção dos unionistas da Irlanda do Norte como uma tribo perdida e à deriva da história, como foram os colonos franceses pieds-noirs da Argélia.

Essa versão evocativa ignora o fato de que a maioria pró-união na ­Irlanda do Norte não marcha ou sofre angústia existencial. Elas podem não querer o protocolo ou uma Irlanda unida, mas nenhum problema as mantém acordadas à noite. Nas pesquisas, elas expressam o desejo de uma sociedade estável e funcional e querem que seus políticos parem de insistir em questões constitucionais. Elas podem se irritar se O’Neill se tornar primeira-ministra, mas estão confiantes de que a Irlanda do Norte permanecerá no Reino Unido no futuro próximo.

Um referendo sobre uma Irlanda unida, quanto mais um voto a favor, parece além do horizonte. O Brexit não produziu um clamor para acabar com a divisão. A mesma pesquisa descobriu que apenas 33,4% da população da Irlanda do Norte votaria pela unificação dentro de 15 anos. Esse apoio caiu para um quarto se uma Irlanda unida significasse impostos mais altos ou pagamento de assistência médica. Essa advertência inflexível dissuadiu até um quinto dos eleitores do Sinn Féin.

O mesmo levantamento deu ao Sinn Féin 27% dos votos, bem à frente do DUP, com 20%. A centrista Alliance, que evita rótulos laranja e verde, ficou em terceiro lugar, com 11%. Partidos nacionalistas e unionistas menores representaram a maior parte do restante. “Temos essa situação estranha em que os votos nos partidos unionistas estão diminuindo, mas o apoio à união é estável”, disse ­Peter ­Shirlow, diretor do Instituto de ­Estudos Irlandeses. Por outro lado, o Sinn Féin pode fazer um avanço eleitoral simbólico em meio a um apoio morno a uma Irlanda unida.

Depois da contagem dos votos em 6 de maio, o compartilhamento de poder poderá congelar novamente. Por sua vez, ­Jeffrey Donaldson, líder do DUP, ­recusou-se a dizer se o partido serviria em um Executivo com um ­primeiro-ministro do Sinn Féin, levantando o espectro de um impasse que poderia paralisar Stormont indefinidamente, exigindo um governo direto de Londres.

Em vez das visões amaldiçoadas de um “poço do diabo”, ou das esperanças brilhantes de uma sociedade não sectária, a Irlanda do Norte parece pronta para se arrastar por seu estranho limbo, não britânica o suficiente para alguns, não irlandesa o suficiente para outros, seu ­eventual destino incerto. É confuso e pouco edificante, e muito melhor do que o horror conhecido como “os Conflitos”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nacionalismo em alta”

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