Era um final de tarde acinzentado e chuvoso. Pelos vidros embaçados do carro era possível observar as centenas de famílias que caminhavam pela estreita rodovia na cidade de Roszke, no sul da Hungria. Havia poucas informações sobre o lugar, até que paramos para perguntar onde ficava a fronteira com a Sérvia para um casal com seus 20 e poucos anos.
Mesmo com olhar cansado, olharam fixamente para mim e apontaram para o caminho contrário ao que faziam. Agradeci e ambos sorriram levemente enquanto fechava o vidro e arrancava com o carro. Foi neste momento em que comecei a compreender um pouco melhor a dimensão da crise e perceber quem eram os “refugiados” de que tanto ouvimos falar. Eram famílias, jovens, crianças, que podiam ser você, eu, ou qualquer um.
Ali, tive a certeza de que havia tomado a decisão correta ao desviar minha viagem de volta da França, onde participava de um festival de fotojornalismo, para visitar a Hungria e fotografar os últimos dias antes do fechamento da fronteira com a Sérvia. Com meus próprios olhos, vi este momento histórico, que remetia às minhas origens.
A grande motivação para acompanhar parte da maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial foi a história do meu pai. Filho de judeus, Ivan Thomas Erdos foi trazido por meus avós para o Brasil quando tinha apenas 2 anos.
Como muitos que fotografei, Vera e Estevão Erdos (originalmente Veronika e István) precisaram perseverar para encontrar um local seguro para levarem suas vidas. Na primeira tentativa de escapar da Hungria pós-Segunda Guerra Mundial, foram capturados e levados de volta para Budapeste. Na segunda tentativa, após dias de caminhada, alcançaram a fronteira com a Áustria. De lá, rumaram para o Brasil, um país distante da guerra que os cercava.
A passagem pela Hungria, entre 8 e 13 de setembro, foi, assim, marcada pela tentativa de me aproximar da história da minha família e compreender as motivações dos refugiados que deixam tudo para trás em busca de estabilidade, segurança e um futuro melhor para seus próprios familiares, como meus avós fizeram.
O primeiro passo da viagem, que fiz com minha companheira, também fotógrafa, foi Budapeste. Na capital húngara, passamos dois dias na principal estação de trem da cidade, que há semanas recebia centenas de refugiados por dia. Palco da fuga de muitos húngaros há algumas décadas, o terminal agora abrigava os recém-chegados.
Acomodadas na parte da frente da estação, em um pátio a céu aberto, centenas de famílias montavam suas barracas ou buscavam, entre as pilhas de roupas doadas, peças que lhes servissem ou que satisfizessem as suas necessidades para seguir a jornada.
Em uma área mais ampla, alguns jovens jogavam futebol, outros conversavam, enquanto dezenas de outros aproveitavam a rede wifi oferecida gratuitamente para mandar notícias aos familiares e amigos nos países de origem. Muitos recebiam informações de gente que se encontrava em outras partes da peregrinação até a Europa.
Dois dias depois, deixamos Budapeste em direção à fronteira com a Sérvia, uma viagem de aproximadamente 180 quilômetros. De forma intermitente, grupos de refugiados atravessavam a fronteira caminhando por um trilho de trem desativado. A cerca de separação entre os dois países era erguida por dezenas de homens, trabalhando apressadamente para que o prazo de conclusão anunciado pelo governo húngaro fosse cumprido. A cena trazia mais dúvidas e receios para os refugiados, que entravam em um dos países mais hostis no caminho até a Alemanha e Suécia, os destinos mais amistosos.
No trajeto, um acampamento montado por organizações internacionais e voluntários do mundo inteiro servia de apoio para os recém-chegados na Hungria. Ali eles podiam trocar suas roupas, os sapatos gastos e ter acesso a comida, água e descanso, coisa que muitos não sabiam o que era há dias.
Logo, o governo da Hungria iniciou um serviço de transporte de ônibus para os refugiados, sem informar claramente, no entanto, qual era o destino. Seguimos um dos ônibus e ele nos levou até um “acampamento de registro”. Localizado em uma área plana e aberta, tinha uma cerca dupla, com uma distância de aproximadamente um metro entre elas. O arame farpado no topo circundava as inúmeras barracas de lonas verdes e marcava a hostilidade da experiência à qual aquelas pessoas foram submetidas.
O acampamento servia para registrar os refugiados que dariam início ao pedido de asilo na União Europeia. Sem saber onde estavam, alguns sírios levados recentemente para aquele local faziam diversas perguntas para nós. Aqui ainda é a Hungria? Por que estamos aqui? Vocês sabem para onde vão nos levar depois? Infelizmente, tínhamos as mesmas poucas informações que eles.
Os sírios nos mostraram uma sacola plástica com um pedaço de pão, manteiga e uma garrafa de água – os únicos alimentos que haviam recebido até aquele momento. Pelo wifi do meu celular, eles conseguiram entrar em contato com familiares e parentes, sempre à espera de notícias.
Durante esses dias na fronteira da Sérvia com a Hungria, conheci muitas pessoas. Todas com o indelével cansaço provocado pela longa e penosa jornada. Para alguns, a penúria se transformou em problemas de saúde. Ainda assim, sempre foram respeitosos e educados, e nunca se importaram em compartilhar suas histórias e seus sonhos, cheios de esperança. Conheci médicos, economistas, empresários, professores, que perderam suas casas, seus escritórios e até familiares para a guerra.
Uma família em especial me marcou. Nos conhecemos perto da fronteira, na fila para pegar o ônibus até o acampamento de registro. Eles me disseram que estavam sem comer há um dia, não por falta de alimentos, mas por tristeza – no dia anterior, se separaram do filho de 20 anos e não sabiam onde ele estava. Quando estavam prestes a embarcar, peguei os contatos de Facebook dos pais e do filho desaparecido. Minha ideia era passar informações entre eles, ou simplesmente avisar o filho onde havia visto a sua família pela última vez, e assim tentar facilitar o reencontro. Alguns dias depois, veio a alegria. Recebi a mensagem do garoto: por acaso, eles haviam se encontrado na fronteira da Hungria com a Áustria. A mesma Áustria que serviu de porto seguro para meus avós em 1949. Eles estavam em um país seguro agora, e lá resolveram se estabelecer.
Mais que as fotografias, o que fica dos dias na Hungria são histórias. Lembranças de pessoas tão corajosas e determinadas como esta família que, como milhares de outras, hoje, ou em tempos passados, enfrentam inúmeras barreiras e desafios na busca de um objetivo tão simples, mas tão difícil de ser alcançado no mundo em que vivemos: uma vida digna.