Mundo
Na capital da ayahuasca
No meio da Amazônia, Iquitos vive o contraste entre os saberes ancestrais e o turismo psicodélico


Cercada pelos rios Itaya, Marañón, Nanay e o imponente Amazonas, Iquitos é uma ilha urbana no coração da floresta peruana. Não se chega de carro, só de barco ou avião. Para alguns, é um ótimo lugar para se esconder. Para outros, um inferno tropical, não apenas pelo calor sufocante, que facilmente ultrapassa os 35 graus, mas pelo caos das ruas esburacadas, dos ônibus de madeira, do trânsito sem semáforo e das favelas de palafita espalhadas pelas margens dos rios. Ainda assim, muitos turistas se aventuram em busca de cura, autoconhecimento, exotismo e transcendência.
A fama como capital mundial da ayahuasca transformou a cidade em um dos destinos mais procurados por quem deseja experiências xamânicas e estados alterados de consciência. Basta olhar com pouco mais de atenção para perceber, no entanto, os contrastes profundos no caótico mercado psicodélico amazônico: de um lado, saberes ancestrais e espiritualidade viva e, de outro, exploração econômica, desigualdade e uma relação ambígua entre a cidade e a bebida que a projetou para o mundo.
A pobreza contrasta com as lembranças de um passado de riqueza dos tempos dos barões da borracha, cuja memória sobrevive nos casarões cobertos de azulejos europeus e em cassinos luxuosos. Nesse cenário de decadência e sonho de prosperidade, o diretor alemão Werner Herzog ambientou seu filme Fitzcarraldo, de 1982, rodado em Iquitos e também em Manaus. A trama, centrada em um estrangeiro obcecado por atravessar a selva com um barco a vapor para construir uma casa de ópera no meio da floresta, é uma metáfora que ainda ressoa: a do forasteiro em busca de riqueza, muitas vezes à custa dos povos originários.
A cidade foi cenário de Fitzcarraldo, de Werner Herzog
A metáfora de Herzog permanece atual no aquecido circuito da ayahuasca em Iquitos. Não há dados oficiais, pois a atividade não é regulamentada no Peru. Segundo fontes ouvidas pela reportagem, a maioria dos retiros espirituais é controlada por estrangeiros. Os preços também não são acessíveis para quem vive na região. “Um retiro pode custar mais de 5 mil dólares (cerca de 27 mil reais)”, afirma Carlos Santillán, assessor da gerência regional de comércio exterior e turismo de Loreto. A maioria dos visitantes, diz, vem atrás da ayahuasca. Os responsáveis por conduzir as cerimônias, em geral indígenas da região, ganham pouco por um trabalho exaustivo e de grande responsabilidade. Segundo relatos, recebem, em média, 50 soles, perto de 70 reais, por cabeça, em rituais que duram cerca de seis horas e envolvem até 20 participantes.
Chegar à casa do xamã Marcelino Nolorbe Faleccio não é tarefa simples. Primeiro, é preciso atravessar a caótica Rua Requena, próxima à Plaza de Armas, no centro. Barracas de peixe e frutas tomam as calçadas e parte da rua. O restante é ocupado por mototáxis, motos com cabine traseira, principal meio de transporte na cidade. Se conseguir driblar o emaranhado de barracas de banana e os vendedores de crocodilos assados, ainda resta um percurso final. Um acesso improvisado em um muro quebrado leva a uma escadaria na encosta de um morro, com degraus de madeira velha e corrimão precário. Lá embaixo, uma imensa favela de palafitas abriga milhares de famílias em casas sobre o lodo às margens do Rio Itaya.
O pé do morro fica perto da casa do xamã, mas ainda é preciso cruzar pontes de ripas gastas sobre águas lamacentas cheias de lixo. Faleccio, de 63 anos, recebe a reportagem com o sorriso aberto. Iniciado no xamanismo aos 12 anos, aprendeu com o avô e o pai. Desde então, dedica-se à cura com ayahuasca e outras plantas, tratando doenças espirituais e desfazendo “feitiçarias”. Na Amazônia peruana, a bruxaria ocupa um papel central no universo da ayahuasca. Conhecida mundialmente por suas propriedades curativas, a bebida é usada também para causar danos. Curandeiros como Faleccio atuam no sentido oposto: desfazem feitiços. Conflitos entre xamãs são comuns, entrelaçando disputas espirituais e materiais.
Proteção. Marcelino Faleccio (esq.) desfaz feitiços. O xamã, hoje com 63 anos, começou aos 12. Isolado em uma palafita, reclama da pouca procura – Imagem: Inon Sani
Hoje, ele realiza seus trabalhos em um quarto minúsculo e abafado de sua casa flutuante. “Não tenho outro lugar para atender”, lamenta. Segundo ele, há tempos ninguém o procura. Mas nem sempre foi assim. Durante duas décadas, trabalhou em grandes centros de ayahuasca, todos comandados por estrangeiros. “Pagavam pouco, 50 soles por sessão, e o trabalho era pesado”, relembra. “Tem que buscar as plantas, cozinhar a bebida, cuidar de quem consome e beber o chá para conduzir a cerimônia.” Atuou em três centros de norte-americanos. Em um deles, a dona veio tratar-se e depois abriu o próprio espaço, padrão comum, conta, entre estrangeiros que se apropriam do xamanismo local.
Faleccio critica o turismo xamânico, responsável, diz, por inúmeros impactos negativos nas comunidades e na floresta. A demanda crescente obriga curandeiros a buscar as plantas cada vez mais longe. O preparo tradicional da ayahuasca, à base de Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi, tem sido substituído por fórmulas adulteradas. “Muita gente faz a bebida para vender aos centros turísticos, e nem sempre cozinham como deve. Misturam outras plantas. Há muitos problemas por causa disso.” Ele denuncia ainda a exportação crescente da bebida e o desmatamento que eliminou boa parte da floresta primária ao redor de Iquitos.
A combinação entre exploração internacional e comércio local desregulado tem sido devastadora para as plantas e o saber tradicional. E não é preciso ir longe para notar. Basta caminhar até o Mercado de Belén. “Você quer ayahuasca?”, pergunta uma vendedora. Entre peixes, frutas, animais silvestres e remédios naturais, circulam turistas do mundo todo em busca de curiosidades exóticas e substâncias psicodélicas. Na Pasaje Paquito, trecho da feira conhecido pelas medicinas da floresta, é possível comprar, sem disfarce, ayahuasca líquida ou em gel, cacto wachuma e rapé com DMT, entre outras plantas psicodélicas. “Vendo 20 litros de ayahuasca por mês”, afirma Grimald Sanchez, que trabalha há 15 anos no local. Desde 1960, o mercado é um dos principais pontos turísticos da cidade. Além dos psicodélicos naturais, há xaropes fitoterápicos e licores afrodisíacos com nomes bizarros como “Levanta-te Lázaro” e “Fura Calção”, em geral misturas de cachaça com testículos de macaco.
Uma das razões por trás do crescente turismo xamânico no Peru é a legalidade. Considerada pelas populações nativas uma medicina, a ayahuasca é reconhecida como patrimônio cultural desde 2008. Outra força que impulsiona esse fluxo é o hype global dos psicodélicos. Embora não existam dados sobre o impacto direto no turismo, a atual empolgação com a ayahuasca está ligada ao avanço das pesquisas científicas. Estudos do chamado renascimento psicodélico acumulam evidências em relação ao potencial terapêutico da bebida e de outras substâncias alucinógenas para o tratamento de transtornos mentais.
Na Amazônia peruana, a bruxaria ocupa um papel central no universo da ayahuasca
Na estrada entre Iquitos e Nauta, capital da região de Loreto, dezenas de centros xamânicos disputam a atenção dos visitantes. Em regiões mais isoladas, acessíveis apenas por rio, multiplicam-se retiros que vão de resorts de luxo a estruturas rústicas. Todos oferecem vivências com ayahuasca e outras plantas psicodélicas. O fluxo intenso de estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos e da França, movimenta a economia local, mas traz problemas: denúncias de abuso sexual, exploração financeira e até mortes durante cerimônias. Mesmo assim, as autoridades evitam o tema.
Apesar do dinheiro que circula em Iquitos, pouco chega aos povos tradicionais. Os artesanatos, importante fonte de renda, também são alvo de exploração. “Compram em sol para revender nos resorts em dólar e por um preço bem mais alto”, reclama a shipibo-conibo Juanita Romayna. “Alguns proprietários estrangeiros dizem até que são indígenas, mas não são.” Romayna acrescenta: “A arte indígena é inspirada nas visões e nos cantos da ayahuasca”. Um exemplo são os tecidos bordados com padrões que representam imagens vistas nas cerimônias. Podem levar mais de um mês para serem fabricados.
Diante da falta de oportunidades e da exploração no mercado local, as mulheres do povo shipibo criaram uma associação que atualmente ocupa uma área na praça central com 20 barracas para a venda de artesanato. Nos dias em que a reportagem esteve ali, o espaço permaneceu, porém, vazio. Enquanto os resorts psicodélicos de gringos seguem a faturar, indígenas são obrigadas a correr pela cidade atrás de turistas nas ruas e restaurantes do centro, implorando por alguns trocados e até comida. Uma amostra dramática de que a prosperidade do turismo xamânico e do renascimento psicodélico, ao menos na capital mundial da ayahuasca, está distante daqueles que há gerações sustentam a tradição com as próprias mãos. •
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na capital da ayahuasca’
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