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Na batalha para salvar Trump, a mentira é a principal tática

‘Mentir virou um recurso, não um defeito. O público espera que eles mintam’

O presidente dos EUA, Donald Trump Universo paralelo. O presidente e seus aliados apelam aos boatos e às ofensas na tentativa de evitar o impeachment
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Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro”, escreveu George Orwell no romance 1984. “Se isso for admitido, tudo o mais se segue.”

O complexo industrial pró-Donald Trump ainda não negou a aritmética básica. Mas, à medida que o impeachment se aproxima, seus aliados parecem travar uma contraofensiva política e de mídia cada vez mais frenética, que coloca a própria verdade em dúvida. Uma série desconcertante de notícias falsas, de fatos distorcidos e várias teorias da conspiração foram propagadas pela mídia trumpista, por políticos republicanos, funcionários da Casa Branca e o presidente em sua própria defesa. É, segundo comentaristas, uma guerra concertada de desinformação, destinada a ocultar revelações prejudiciais, enquanto a Câmara dos Deputados prepara sua sanção final. 

Nota de CartaCapital: Por ora, Trump perdeu. Na quarta-feira 18, a Câmara dos Deputados, dominada pelo Partido Democrata, aprovou o processo de impeachment. A decisão final caberá ao Senado,  de maioria republicana.

“Quanto mais fatos aparecem, mais desesperados eles ficam”, disse Kurt Bardella, ex-porta-voz e consultor sênior da comissão de supervisão da Câmara. “Eles sabem que, em um debate centrado em fatos, verdade e realidade, eles perdem. Seu único mecanismo para sobreviver é turvar as águas, distorcer, distrair e esperar que, se repetirem as mentiras com bastante frequência, elas se tornem reais.”

Trump tornou-se o quarto presidente dos Estados Unidos a enfrentar um processo de impeachment. É acusado de abuso de poder, ao pressionar a Ucrânia a anunciar investigações que impulsionariam sua campanha à reeleição em 2020, e obstrução do Congresso ao ordenar que testemunhas contestem intimações.

Em audiências públicas e em inúmeras entrevistas à mídia, os republicanos tentaram argumentar que Trump, na verdade, se justifica ao rejeitar as duas investigações: uma sobre se a Ucrânia interferiu nas eleições presidenciais de 2016 e outra sobre uma empresa de gás ucraniana ligada a Hunter Biden, filho de seu potencial adversário em 2020, Joe Biden. O advogado pessoal do presidente, Rudy Giuliani, voou até a Ucrânia com a One America News Network para entrevistar autoridades para uma docussérie. Segundo The Wall Street Journal, quando Giuliani voltou a Nova York, o presidente telefonou-lhe ainda na pista e perguntou: “O que você conseguiu?” O ex-prefeito de Nova York teria respondido: “Mais do que você pode imaginar”. 

Giuliani visitou Trump na Casa Branca na sexta-feira 13. A comunidade de inteligência dos EUA não encontrou evidências para apoiar a denúncia de interferência ucraniana em 2016. Fiona Hill, ex-especialista em Rússia na Casa Branca, alertou que espalhar “a narrativa ficcional” é espalhar propaganda russa e fazer o jogo de Vladimir Putin. Christopher Wray, diretor do FBI, disse não haver “indícios” de que a Ucrânia tenha interferido.

Rick Wilson, estrategista republicano: “Mentir virou um recurso, não um defeito. O público espera que eles mintam”

Vários senadores republicanos continuam, no entanto, a vender essa contranarrativa. No domingo passado, Ted Cruz, que disputou com Trump as primárias de 2016, disse ao programa Meet the Press, da NBC: “A Ucrânia interferiu descaradamente em nossas eleições”.

As sobrancelhas do apresentador Chuck Todd se ergueram de surpresa. “Senador, isso me parece estranho”, disse ele, observando que Trump perseguiu cruelmente Cruz durante a campanha da primária, questionando seu local de nascimento e religião e insultando sua esposa. 

Rick Wilson, estrategista republicano e autor de Everything Trump Touches Dies, disse: “Não estou surpreso com Ted Cruz ser lisonjeiro com Trump. Trump quebrou Ted Cruz há muito tempo. Os republicanos têm a pior síndrome de Estocolmo política que eu já vi”.

Wilson observou que não há punição para os aliados de Trump. “Não há consequências por serem mentirosos. Tornou-se um recurso, não um defeito. O público espera que eles mintam. Há uma certa liberdade em não ter consciência e ser capaz de mentir sobre qualquer coisa e ver Trump exagerar as coisas. Trump adora jogar como o Coringa, e eles se deleitam quando ele faz esse papel.”

Os republicanos trabalharam duro para justificar o pedido de Trump de uma investigação sobre Biden. Eles pressionaram para que Hunter atuasse como testemunha, mesmo que não haja evidência de irregularidade da parte dele. Na quinta-feira 12, Matt Gaetz, da Flórida, apresentou uma emenda aos artigos de impeachment que substituiriam uma referência a investigações sobre Joe Biden por “o verdadeiro tema da investigação, a Burisma e Hunter Biden”. 

Outra defesa republicana depende do tribalismo político. Cheios de virtuosa indignação, eles afirmam que os democratas planejaram o impeachment de Trump o tempo todo e, portanto, o inquérito é uma “farsa”. Doug Collins, o principal republicano na Comissão de Justiça da Câmara, afirmou que os democratas “não conseguem superar o fato de Donald Trump ser presidente dos Estados Unidos, e eles não terem um candidato que considerem capaz de derrotá-lo”.

O inquérito de impeachment não é o único vislumbre do universo paralelo de Trump e seus aliados. Acaba de ser divulgado um relatório geral de um inspetor do Departamento de Justiça que desmentia a teoria conspiratória de que a investigação da campanha de Trump em 2016 e seus laços com a Rússia se originou com viés político. “O FBI teria sido negligente em nossa responsabilidade se não abríssemos o caso”, cita o relatório.

A antiga afirmação de Trump de que a investigação da Rússia era uma farsa e uma caça às bruxas foi demolida diante de seus olhos. Sua primeira resposta da Casa Branca veio, porém, de um universo paralelo de ponta-cabeça, onde dois mais dois são cinco. “O relatório do IG acaba de sair, e fui informado sobre isso, e é uma vergonha o que aconteceu com relação às coisas que foram feitas ao nosso país”, disse a repórteres. “Isso nunca deve acontecer novamente com outro presidente. É incrível. Muito pior do que eu jamais poderia imaginar possível. E é uma vergonha para o nosso país. É desonesto. É tudo o que muitas pessoas pensavam que seria, só que muito pior.”

Esse ataque republicano calibrado e multifacetado deixou a nação no que alguns chamam de estado de “decadência da verdade”, quando todo o senso de realidade comum se desintegra. As táticas oferecem uma prévia assustadora de como o presidente pretende lutar nas eleições do próximo ano. Bardella avalia: “Temos uma chance de voltar a uma certa quantidade de normalidade e respeito. Muito mais do que Donald Trump está em votação: fato e verdade e o nosso modo de vida democrático estão em votação”.

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