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A tese de perseguição do “sistema” consolida o apoio a Donald Trump entre os eleitores republicanos


De seu canto rural em Iowa, no Centro-Oeste dos Estados Unidos, Neil Shaffer fez mais do que precisava para colocar Donald Trump na Casa Branca e tentar mantê-lo lá. Shaffer supervisionou a maior mudança de qualquer condado no país de Barack Obama para Trump em 2016 e aumentou a participação do então presidente nos votos quatro anos depois. Mas o líder do Partido Republicano no condado de Howard não se entusiasma com a perspectiva de mais uma campanha presidencial de Trump, e culpa os democratas por impulsioná-la. “Honestamente, os democratas estão dando um tiro no próprio pé com esses processos”, disse. “Por que Trump está indo tão bem? Porque os eleitores sentem que ele está sendo atacado. Se esse é o esforço dos democratas para fazê-lo parecer ruim, não conseguiram. Provavelmente isto vai torná-lo o candidato republicano e, honestamente, ele pode ganhar a eleição geral de novo. E então de quem seria a culpa?”
Depois de se declarar inocente na quinta-feira 3 de acusações federais sobre suas tentativas de roubar a eleição presidencial de 2020, Trump denunciou o indiciamento como “uma perseguição a um oponente político”. “Se você não pode vencê-lo, você o persegue ou o processa”, atacou.
‘Simplesmente não gostam dele porque está drenando o pântano’, acredita Tom Schatz, agricultor de Iowa
Muitos compram essa linha de raciocínio em Iowa e no resto dos Estados Unidos. Até agora, Ron DeSantis não conseguiu diminuir a enorme liderança de Trump para a indicação do Partido Republicano. Com a probabilidade de o ex-presidente passar boa parte do próximo ano em algum tribunal, depois de ser indiciado em Nova York, Flórida e Washington por uma série de acusações e com outras esperadas para breve na Geórgia, seus apoiadores estão mais que dispostos a acreditar em uma conspiração para manter seu homem fora da Casa Branca. Um deles é Tom Schatz, agricultor no condado de Howard, na divisa de Iowa com Minnesota. “Eles estão apresentando as acusações contra Trump para que ele não possa concorrer contra Biden. Biden é tão desonesto… Nunca tivemos esse tipo de merda nos Estados Unidos, nunca”, afirmou. “Os democratas vão continuar montando nas costas de Trump. Eles não desistem. Simplesmente, não gostam dele porque está drenando o pântano, e eles não gostam disso.”
Schatz, como muitos apoiadores de Trump, vê os processos como parte de um padrão de ataques ao establishment, desde o processo de impeachment do então presidente pelo Congresso por duas vezes até a investigação do FBI sobre supostos laços entre a Rússia e sua campanha de 2016. A mesma mensagem é martelada em estações de rádio de direita, que muitas vezes são o pano de fundo do dia de trabalho nas áreas rurais.
Em baixa. Após um sprint inicial, DeSantis, governador da Flórida, não convence a militância republicana – Imagem: Sergio Flores/AFP
No dia da acusação de Trump, Buck Sexton, ex-analista da CIA na rádio AM 600 WMT em Iowa, dizia energicamente a seus ouvintes, sem ironia, que os processos minavam a confiança no sistema eleitoral. “Estamos enfrentando algo com que nunca lidamos antes”, declarou. “Eles não se importam com o quão irresponsável é isso, os democratas. Não os incomoda a perturbação que estão fazendo à fé no sistema judicial, à fé nas nossas eleições, algo de que ele falou o tempo todo. Como se pode ter uma eleição justa quando um candidato logo terá quatro processos criminais contra ele? Fato especificamente programado para acontecer durante a eleição.”
Shaffer sentiu o vigor renovado na campanha de Trump quando se encontrou com o ex-presidente dias antes do último indiciamento, no jantar anual para angariar fundos para o Partido Republicano em Iowa. Trump estava entre os 13 candidatos presentes para defender seu caso antes de se encontrar com os ativistas do partido, um a um. E também seu ex-vice-presidente Mike Pence. “Sinto-me mal por Pence, porque havia 500 na fila para ver Trump, e literalmente cinco na sala para Pence. Trump tem essa conexão. A maior parte do nosso grupo estava lá só para conhecê-lo.” Segundo Shaffer, a fila para ver DeSantis era mais longa do que para Pence, mas nada como a de Trump, que ele interpretou como mais uma prova de que o momento do governador da Flórida havia passado e que os processos ajudaram a reanimar a candidatura de Trump. “Acho DeSantis incrível. Acho que um dia ele será um grande presidente. Mas, enquanto Trump estiver concorrendo, não há como ele conseguir a indicação.”
“Trump 2024. As regras mudaram”, estampa uma bandeira no condado de Howard
As pesquisas confirmam essa visão, mas entre alguns eleitores do condado de Howard o apoio a Trump é menos claro. O filho de Tom Schatz, Aaron, foi um eleitor relutante de Trump em 2016. Ele votou em Obama, mas não gostava de Hillary Clinton. Estava muito mais entusiasmado com Trump quatro anos depois, mas esfriou desde então. Por tudo isso, Schatz acredita que o ex-presidente é vítima de uma conspiração política. O produtor de laticínios e milho disse estar mais preocupado com a inflação, o aumento das taxas de juro e a queda dos preços do leite que produz do que com os detalhes da acusação de 45 páginas que expõem as tentativas de Trump de derrubar a eleição de 2020. Ele preferiu ver as acusações como evidências de um critério duplo, no qual o establishment de Washington falhou em investigar adequadamente supostos crimes de Hillary Clinton ou Hunter Biden.
Questionado sobre a participação de Trump na invasão do Capitólio em 6 de janeiro, Schatz a considerou uma coisa ruim, mas não muito diferente do que, na opinião dele, ver políticos democratas encorajando os protestos e tumultos que se seguiram ao assassinato de George Floyd três anos atrás. “Eles incendiaram Minneapolis. E foram processados por isso?”, perguntou. “Trump agiu mal quando perdeu, admito. Mas eles estão apenas tentando pôr tudo o que puderem em cima dele. Parte de mim pensa que tudo o que eles farão é unir os seguidores de Trump. Acho que estão fazendo mais mal do que bem.”
Shaffer também não está convencido pelos detalhes da acusação. “Ainda não gosto de muita coisa que Trump fazia, muito do que ele dizia. Os cidadãos sabem que ele não se comportou muito bem desde o dia da eleição até 6 de janeiro. Mas isso chega ao nível em que ele deveria ir para a prisão porque disse algo num telefonema? Acho que somos mais adultos que isso.”
As suspeitas sobre a enxurrada de acusações estendem-se até mesmo à presidente do Partido Democrata no condado de Howard, Laura Hubka, veterana da Marinha dos Estados Unidos e tecnóloga de ultrassom no hospital da cidade, que não gosta de Trump. “Acho que o estão perseguindo porque ele está fugindo”, avalia. “Ele quebrou as leis e é um cara mau? Sim. Mas acho que, se ele simplesmente fosse para o ocaso e tagarelasse no Truth Social, talvez o tivessem deixado em paz. Mas assim que concorreu novamente as pessoas pensaram que ele era popular o suficiente para vencer de novo, e precisamos fazer algo para detê-lo. Eles tinham de fazer alguma coisa, eu acho.”
O impacto dos próximos julgamentos de Trump e as evidências que eles expõem ainda não foram vistos. Mas pode-se esperar que, embora os apoiadores obstinados permaneçam leais, aqueles que votaram nele uma vez, mas mudaram para Biden quatro anos depois, têm poucos motivos para voltar.
Na rabeira. Pence, o ex-vice que rompeu com Trump, corre por fora, com chances praticamente nulas nas primárias – Imagem: Sergio Flores/AFP
Trump foi derrotado por 7 milhões de votos populares e 74 cédulas do Colégio Eleitoral em 2020, e alguns democratas calculam que ele lutará para superar esse déficit com a bagagem adicional de acusações, julgamentos e, possivelmente, até a prisão. As pesquisas mostram, porém, que os dois presidentes mais recentes dos Estados Unidos estão empatados, inclusive em estados decisivos, como Michigan. “Toda vez que o indiciam, ele sobe nas pesquisas”, afirma Shaffer. “Acho que os democratas são muito arrogantes. Alguns liberais acreditam que, assim como fizeram em 2016, ele nunca mais será eleito, nunca mais. Não tenho muita certeza disso.”
De sua parte, Hubka não consegue acreditar que as pesquisas estejam tão apertadas, mesmo que falte mais de um ano para a eleição. “Sinto que ele pode disputar da prisão, e ainda assim será uma disputa acirrada com Joe Biden. É isso que me assusta.”
O que levanta uma pergunta sobre por que os democratas não estão se saindo melhor em um antigo reduto como o condado de Howard. Shaffer diz que o condado está indo bem de várias maneiras, graças a Biden. Segundo ele, a Lei de Redução da Inflação injetou dinheiro no condado, pagando para renovar a infraestrutura, incluindo pontes e estradas. O trabalho de conservação de Shaffer para o estado é bem financiado pelo governo federal, e traz benefícios financeiros para os agricultores. Além disso, o impulso para a energia verde resultou na proliferação de moinhos de vento muito lucrativos. “Temos muitos moinhos por aqui, e isso é um enorme benefício. Cada um deles está avaliado em 1 milhão de dólares, e podemos tributá-los e colocar dinheiro em nosso orçamento para podermos construir pontes e estradas e ter dinheiro para as escolas”, disse Shaffer. “Um dos meus agricultores tem quatro moinhos de vento e todas as estradas e linhas. Ele recebe 185 mil dólares por ano com isso. Ele construiu uma casa nova, tem tratores novos. Toda a parte noroeste do condado costumava ser uma área mais deprimida. Os moinhos de vento bombearam muito dinheiro.”
Shaffer está surpreso que, com tantos republicanos denunciando a energia renovável, o Partido Democrata não esteja se esforçando mais para reivindicar o crédito pelos benefícios no condado de Howard. Hubka culpa a liderança nacional democrata, acusada de se concentrar excessivamente em partes do país onde a maioria dos residentes tem educação universitária, ao contrário da zona rural de Iowa. “Eles precisam pegar algumas bolas, ser mais ousados. Também sinto que estão apenas descartando os condados rurais.”
Mas Hubka continua lá, em campanha e a esperar para ver o que acontecerá se Trump for preso. Ela comprou uma arma antes da última eleição por causa das muitas ameaças de apoiadores do republicano. “Eu estava realmente com muito medo de levar um tiro ou de me machucar. Acalmou um pouco nesse sentido, mas quem sabe o que acontecerá se ele for jogado na prisão?”
Na esquina de seu hospital, uma bandeira pendurada diante de uma casa pode ser lida como um aviso: “Trump 2024. As regras mudaram”. •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
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