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Músicas que negam a pandemia e chamam a vacina de ‘veneno’ são promovidas pelo Spotify
Por meses, a gigante do streaming ignorou os alertas de um pai preocupado com as canções negacionistas doi rapper Remeece


Canções que afirmam ser fake a Covid-19 e descrevem as vacinas como “veneno” estão sendo ativamente promovidas para os usuários do Spotify em playlists geradas por seu motor de recomendação de conteúdo. Faixas encontradas no maior serviço de streaming musical do mundo incentivam explicitamente as pessoas a não se vacinarem e dizem que as que o fizerem são “escravas”, “carneiros” e vítimas de Satã. Outras pedem uma rebelião, dizendo aos ouvintes: “Lutem por suas vidas”. “Eles enganaram o mundo inteiro com os testes PCR. A polícia do pensamento está patrulhando. Você não vê o que está acontecendo?”, diz a letra de outra, acrescentando: “A coisa toda acaba quando o povo se levantar”.
O Spotify removeu no último fim de semana várias das canções indicadas ao serviço pelo The Observer, a burlar as regras que proíbem conteúdos que promovam informações “perigosas, falsas ou enganosas sobre a Covid-19” e possam representar ameaça à saúde pública. Antes de serem retiradas, as canções podiam ser facilmente encontradas usando palavras-chave na máquina de buscas do Spotify. Mas elas também eram promovidas ativamente aos usuários que manifestassem interesse por canções semelhantes através de playlists geradas automaticamente, potencialmente levando-as a um público muito maior.
Um usuário que escutou uma canção antivacina recebeu uma playlist personalizada, conduzindo-o a músicas ainda mais radicais. Das 50 faixas dessa lista, 19 incluíam referências explícitas à desinformação sobre vacinas e Covid, incluindo afirmações de que a vacina está sendo usada para aplicar microchips nas pessoas. Algumas faziam referência a outras teorias da conspiração, incluindo alegações de que pedófilos satânicos dirigem o mundo e que o tiroteio na escola Sandy Hook nos Estados Unidos, que matou 26 pessoas, foi uma farsa.
Entre os artistas cujo conteúdo foi recomendado a usuários estava o rapper Edward Freeman, conhecido como Remeece, que ganhou manchetes no Reino Unido depois de percorrer escolas gritando seu hino contra as vacinas para os alunos. A letra da canção Don’t Tek Di Vaccine diz repetidamente “não tome essa coisa maldita” e descreve a vacina como um “veneno”. Remeece visitou escolas primárias e secundárias em Londres, na Cornualha e em Bournemouth, segundo vídeos postados no Instagram. Em dezembro, apresentou a canção em um protesto com Piers Corbyn, figura-chave no movimento antivacina britânico.
O Spotify há muito está consciente de que hospeda o conteúdo do rapper, denunciado à plataforma por um pai preocupado em novembro, segundo e-mails vistos pelo Observer. Seu material continuava ao vivo sem qualquer aviso de conteúdo até a semana passada. As descobertas provocaram debate sobre a condução da desinformação pela gigante do streaming, com críticos pedindo que a plataforma e outros serviços com conteúdos semelhantes sejam considerados pelos mesmos critérios que as plataformas de rede social como Facebook e Instagram.
Por meses, a gigante do streaming ignorou os alertas de um pai preocupado com as canções negacionistas doi rapper Remeece
Com mais de 180 milhões de usuários, o Spotify enfrentou recentemente críticas sobre sua relação com o podcaster Joe Rogan, contratado em acordo de exclusividade por supostos 100 milhões de dólares. Vários artistas, incluindo Neil Young e Joni Mitchell, pediram que seus respectivos conteúdos fossem removidos do Spotify, em protesto contra o suposto papel de Rogan na disseminação de desinformação sobre a Covid-19, e 270 médicos e cientistas, profissionais de saúde e professores americanos escreveram à plataforma chamando Rogan de “ameaça à saúde pública”.
Convidados em seu podcast The Joe Rogan Experience incluíram Robert Malone, um polêmico pesquisador de doenças infecciosas que participou do desenvolvimento da tecnologia da vacina de RNA mensageiro, mas depois foi acusado por espalhar desinformação sobre o imunizante. Em resposta a essas críticas, o Spotify deletou vários episódios e publicou novas regras, dizendo aos que enviam conteúdo para evitarem dizer que a Covid é uma farsa e disseminar desinformação contra as vacinas. Ele também disse que acrescentará avisos de conteúdo a episódios de podcast que falem sobre a Covid-19.
No entanto, as canções contra as vacinas, que contêm letras muito mais radicais do que esses podcasts, não trazem advertência de conteúdo. Em alguns casos, o algoritmo dirigiu os ouvintes para conteúdos com baixo número de execuções, potencialmente ampliando o alcance de desinformação que do contrário teria um público limitado. Muitas dessas canções tinham títulos contendo palavras-chave como “vacina” e “máscara”, sugerindo que seria fácil para o Spotify localizá-las, se quisesse.
Imran Ahmed, executivo-chefe do Centro de Oposição ao Ódio Digital, grupo que monitora a desinformação e o conteúdo prejudicial online, disse que o material identificado continha “desinformação não científica, provavelmente falsa”, incentivando os ouvintes a recusarem as vacinas que podem salvar vidas. “O Spotify não está apenas hospedando e lucrando com desinformação perigosa, como também seu algoritmo está ativamente conectando peças separadas de desinformação perigosa e embalando-a para os ouvintes”, alerta. “Depois da polêmica sobre Joe Rogan, muito se falou sobre a suposta posição dura do Spotify contra a desinformação sobre Covid. Parece que a verdade é o contrário.”
O Spotify removeu outros tipos de conteúdos danosos de sua plataforma que foram considerados avessos às suas políticas.
Em dezembro, depois de uma investigação da Sky News, ele retirou quase 150 horas de conteúdo que disse violarem sua política de conteúdo de ódio, incluindo material antissemita, racista e da supremacia branca em podcasts.
Em 2020, uma investigação da BBC levou o Spotify e outras plataformas, incluindo Apple Music, YouTube Music e Deezer, a removerem conteúdos racistas, antissemitas e xenófobos. Um trecho de um discurso de Hitler, com pedidos para os “arianos” fazerem um recomeço do zero e referências ao poder branco, foi encontrado em canções no serviço de streaming. Mas a empresa ainda não disse se pretende acrescentar avisos de saúde a canções que mencionam a Covid-19. “O Spotify proíbe ações na plataforma que promovam conteúdos perigosos, falsos ou enganosos sobre a Covid-19, que possam causar danos offline e/ou representem ameaças diretas à saúde pública. Quando são identificados conteúdos que violam esses critérios, tomam-se medidas apropriadas”, limitou-se a dizer um porta-voz. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No embalo das fake news“
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