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Motosserra a toda

Um retrato realista do “sucesso” das políticas de Javier Milei, celebradas em prosa e verso no Brasil

Motosserra a toda
Motosserra a toda
Assim é fácil. A fórmula do “libertário” é manjada: empurrar uma multidão para a fome e o desespero, paralisar o país e beneficiar as grandes empresas – Imagem: Luis Robayo/AFP e iStockphoto
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Um fantasma anda pela Argentina. Em 10 de dezembro, Javier Milei completou seu primeiro ano de governo, um presidente que não só praticou um gigantesco ajuste salarial e uma hiper-recessão, como se orgulha publicamente do feito.

Diante desse aparente mistério, o consultor Rafael Prieto, diretor da consultoria QSocialNow, afirma que Milei “é um sintoma da fragmentação social, que leva à eliminação do diferente, principalmente quando representa uma ameaça, real ou construída”. O presidente argentino, analisa Prieto, utiliza o que define como “emotividade negativa”. Rejeita a ideia de que essa técnica emocional seja puro discurso. “Admite uma base material que não deve ser ignorada, produto da desarticulação da economia e do crescimento acelerado da desigualdade, realidades que Milei não criou, mas agravou em um ritmo vertiginoso”, afirma. “Exatamente por isso, é ao mesmo tempo causa e sintoma do que está acontecendo.”

Caso Lula fizesse campanha na Argentina, poderia muito bem repetir seu ­slogan de 2002, quando prometia garantir à população três refeições por dia. “Tem muita gente de fora”, critica Dom Marcelo Colombo, presidente da Conferência Episcopal. “E toda a reforma econômica deve ser feita com as pessoas dentro.” Colombo acrescenta: “Percebemos isso nos refeitórios populares e nos locais abertos para que os mais pobres possam tomar um copo de leite, porque o número de frequentadores se multiplicou por quatro”. O religioso foi eleito presidente dos bispos católicos na maior mudança de liderança da Igreja argentina em toda a sua história. Embora, formalmente, as autoridades eclesiásticas sejam eleitas por seus pares, são nomes ligados ao papa Francisco.

A economia vai recuar 3% neste ano. O ajuste dá-se à custa de trabalhadores e aposentados

O governo mantém uma relação áspera com a Igreja argentina e o Vaticano. ­“Milei ficou incomodado com as críticas do papa aos atos de repressão aos protestos dos aposentados por melhor renda”, afirma o analista eclesiástico Washington Uranga. E planejou retaliações. Em 29 de novembro, o presidente ordenou que seu chanceler, Gerardo Werthein, um dos maiores empresários da Argentina, não participasse da comemoração no Vaticano do acordo de fronteira entre a Argentina e o Chile, assinado em 1984, há 40 anos. Para o Vaticano, que quer exercer um papel pacificador na guerra entre a Ucrânia e a Rússia e em Gaza, a ocasião era importante: aquele acordo foi assinado com a mediação de João Paulo II. Para o papa Francisco, a comemoração seria a lembrança de um êxito e, portanto, um símbolo do que pretende fazer nos conflitos atuais. “O compromisso que envolveu esses dois países durante as difíceis negociações, bem como o fruto da paz e da amizade, é um modelo a imitar”, disse Francisco, sem rodeios.

Milei não está aborrecido apenas com Francisco. Ele coroou seu primeiro ano de mandato com uma de suas jogadas preferidas: maltratar Luiz Inácio Lula da Silva e desvalorizar o Mercosul. Na verdade, o presidente Lula era uma obsessão de Milei durante a campanha eleitoral: chamou-o de “comunista” e “corrupto” e disse que não discutiria com ele nenhuma questão de Estado.

Em 6 de dezembro, durante a cúpula do Mercosul realizada em Montevidéu, Milei fez gestos de zombaria enquanto Lula discursava. Depois, em sua própria mensagem, o argentino disse: “A realidade é que temos dois caminhos. Ou aceitamos que o Mercosul não funciona e o dissolvemos, o que não é a vontade do governo argentino, ou o adaptamos para que seja funcional às necessidades atuais de seus integrantes”. O ministro da Economia da Argentina, Luis Caputo, explicou essas necessidades. O direito de cada ­país do bloco de assinar acordos de livre-comércio por conta própria.

Em 2020, quando o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, deu instruções para transformar o Mercosul em uma simples plataforma de assinatura de TLCs, seu colega argentino, Felipe Solá, respondeu que isso equivalia à dissolução da área comum. E não apenas por violar os estatutos. Tiraria a razão da associação dos países, nascida em Assunção (Paraguai) em 1991.

Sufoco. Os argentinos que protestam recebem em resposta jatos de água, gás lacrimogêneo, cassetetes e pontapés – Imagem: Luis Robayo/AFP e Juan Mambromata/AFP

Milei completou um ano de governo em 10 de dezembro sem ter feito uma visita bilateral a nenhum país sul-americano. Isso nunca havia acontecido em 41 anos de democracia. O Brasil não é apenas o maior parceiro comercial da Argentina. É o principal destino das exportações de manufaturas industriais. A China, outro grande parceiro comercial, compra soja, e não máquinas ou autopeças. “Meu alinhamento é com os Estados Unidos e Israel”, proclama o chefe de Estado. Sua política externa se baseia na dissociação da Argentina da ONU e de todas as formas de multilateralidade. A agenda 2030, ou 2045, foi descrita como “socialista”. O ­país não votou a favor das resoluções das Nações Unidas contra a violência de gênero e em defesa dos povos indígenas.

“Estamos travando uma batalha cultural”, explica o propagandista de Milei, Agustín Laje, presidente da Fundação Faro, organização fundada por Milei para angariar fundos com grandes empresários e intensificar os laços com a CPAC, a Conferência Política da Ação Conservadora, que funciona como uma verdadeira Internacional da extrema-direita. “Graças a Laje, seremos como um Gramsci de direita”, disse Milei, referindo-se a Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, e sua teoria da hegemonia.

Desde que assumiu o cargo, Milei voou o equivalente a três vezes a volta ao mundo. A maioria das viagens foi relacionada a reuniões do CPAC ou com seus integrantes. Estreitou as relações com o partido neofranquista espanhol Vox, ao mesmo tempo que insultava o primeiro-ministro da Espanha, o segundo maior investidor na Argentina depois dos Estados Unidos. Teve cinco reuniões com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e está prestes a embarcar numa viagem para um congresso de seu partido de extrema-direita, Fratelli Tutti. No Brasil, suas referências são Jair e Eduardo Bolsonaro. No Chile, os neonazistas de José Antonio Kast. “Sou um dos dois políticos mais importantes do mundo”, declarou em uma entrevista. Quando o jornalista lhe perguntou quem era o outro, respondeu: Donald Trump.

Depois de eleito, Trump elogiou Milei em Mar-a-Lago, sua residência na Flórida. “Parabenizo você pelos seus números.”

A inflação, agora em baixa, foi insuflada, em parte, pelo próprio Milei

O sonho do governo argentino é que, graças a essas boas relações, Trump dê instruções a seus delegados no Fundo Monetário Internacional para emprestar 11 bilhões de dólares à Argentina ou para reescalonar os vencimentos do empréstimo atual. Em 2018, o presidente argentino Mauricio Macri recebeu 45 bilhões, maior concessão da história do FMI. Foi a religação da Argentina com o Fundo, depois da desconexão da Argentina e do Brasil no fim de 2005 e início de 2006.

Os números que Trump elogiou refletem o que Milei considera seu maior sucesso. Um, ter alcançado o “déficit zero”, objetivo econômico, político e cultural do seu governo. Outro, ter conseguido reduzir a inflação. A taxa de outubro foi de 2,7%. Até agora, em 2024, o número acumulado é de 107%. Ao comparar outubro de 2023 com outubro de 2024, o aumento foi de 193%. “O próprio Milei foi quem deu o grande salto inflacionário, porque desvalorizou a moeda em 118% poucos dias depois de assumir o cargo, em dezembro de 2023”, diz o analista ­Pablo ­Vera. “Então, o que está acontecendo agora é que a inflação está diminuindo desde o pico que o próprio Milei causou.”

O que mandatários neoliberais como Carlos Menem esconderam, Milei afirma com orgulho. “Fizemos o maior ajuste fiscal da história”, diz este presidente que dá a seus amigos estrangeiros um boneco dele com uma motosserra na mão. Em algumas províncias, equivalentes aos estados brasileiros, a motosserra foi especialmente feroz. Segundo o governador peronista do estado de Buenos Aires − não confundir com a cidade, um distrito federal −, o presidente pune os 17 milhões de habitantes da região. “Deve ser porque Milei não venceu em Buenos Aires nem no primeiro turno nem no segundo, e porque me ree­legeram governador”, diz Axel Kicillof.

A maioria das pesquisas indica que ­Kicillof é o adversário com imagem menos negativa. Economista com tese de doutorado sobre John Maynard Keynes, o governador, de 53 anos como Milei, afirma que os cortes de verbas federais para seu estado representam “um quarto do nosso orçamento”. A tesourada no envio de recursos ocorreu na forma de subsídios para transporte, verbas para salários de professores e alimentação escolar. “Além disso, Buenos Aires contribui com 36% dos recursos que o governo federal distribui entre os demais estados e recebe apenas 22%”, prossegue. “Tínhamos mil obras públicas em andamento, e Milei brecou 93%”, queixa-se Gabriel Katopodis, secretário da Infraestrutura de Kicillof. Essas obras se distribuem entre habitação, saneamento, construção e manutenção de estradas.

Servidão. Para Milei, Trump é maior. Ele vem depois – Imagem: Redes sociais

A autopercepção triunfalista de Milei é refutada por economistas heterodoxos. Hernán Letcher, diretor do Centro de Economia Política Argentina, prevê que até o fim de 2024 terá havido uma queda de 3% do PIB. Não é maior, de 4,2%, por causa do setor agropecuário. Letcher relata que, comparando ano a ano, a construção caiu 19,5%, a indústria 12,4% e o comércio 10,8%. Segundo dados da Superintendência de Riscos Ocupacionais, de novembro de 2023 a agosto de 2024, desapareceram mais de 250 mil empregos registrados.

A desaceleração da inflação, explica o economista, deve-se a dois motivos. O primeiro é a queda do consumo. A compra de carne bovina por habitante, sinal da identidade argentina, está no pior patamar dos últimos 28 anos. O segundo é o aumento da taxa de câmbio e um esquema rígido de desvalorização mensal da moeda, de 2%.

Atenção, brasileiros: por essa taxa de câmbio vocês verão argentinos bebendo caipirinha por todo o litoral. As agências de turismo veem um cenário de invasão da classe média argentina mais abastada em Florianópolis, Rio de Janeiro e Bahia. Ao mesmo tempo, hoje não se ouve mais português nas ruas de ­Buenos Aires, nas milongas onde se aprende a dançar tango ou nos outlets de roupas do bairro Villa Crespo.

Assim como Prieto, os sociólogos se perguntam por que, com esse nível de ajuste, Milei mantém níveis de popularidade acima de 40% após um ano no cargo. “A identidade argentina sempre se desenvolveu sob a ideia do mito do país rico”, escreveu o consultor Hugo Haime no jornal Perfil. “A política está em crise, a sociedade está sem esperança e precisa acreditar em alguém que a ponha novamente em seu sonho do país da riqueza, e esse é o mandato de Milei.”

Milei age para destruir a Constituição, denuncia Raúl Gustavo Ferreyra

Na mesma linha, o pesquisador ­Facundo Selfeni afirma que “Milei, Bolsonaro e Trump compartilham um estilo incendiá­rio, com formas violentas que colocam em crise as regras democráticas, a estigmatização das minorias sociais, a construção de bodes expiatórios e a promessa de um grande futuro que lembre os melhores anos de um passado que, na verdade, não existiu”.

Existe, diz Selfini, uma relação entre o estrategista de Trump, Steve Bannon, e ­Fernando Cerimedo, um dos integrantes da equipe digital da extrema-direita argentina, investigado pela Justiça brasileira por manobras de desinformação antes da eleição de Lula e a tentativa de golpe e assassinato em 2023.

A União pela Pátria, frente política liderada pelo peronismo hoje presidida formalmente pela ex-presidente ­Cristina ­Kirchner, obteve 44% dos votos no segundo turno em 2023, mas não consegue oferecer uma alternativa clara.“É verdade que as políticas adotadas primeiro por Néstor Kirchner e depois por ­Cristina Kirchner permitiram melhorar a qualidade de vida e restaurar as receitas”, ­admite o economista Guido ­Aschieri. “O Produto Interno Bruto cresceu a taxas próximas de 9% ao ano, e a população abaixo da linha da pobreza caiu de 50% para 20% entre 2003 e 2015.” Mas Aschieri indica que não houve fortalecimento da estrutura industrial. “A expansão da economia manteve a dependência da importação de insumos e bens de capital”, lembra. “Não se trata de criticar as limitações para ignorar os méritos, e sim de registrar as insuficiências para elaborar um amplo programa de melhorias. Se não houver autocrítica, a oposição terá menos credibilidade perante a opinião pública.”

Enquanto discute a inflação e os gastos fiscais, a Argentina vive um debate profundo sobre suas instituições. “Milei é um monopresidente”, descreve o constitucionalista Raúl Gustavo Ferreyra, visitante frequente das universidades brasileiras. “É um ser absoluto, um verdadeiro absurdo do ponto de vista da construção do Estado.” Ferreyra critica especialmente o abuso dos decretos de necessidade e urgência, porque “agora o monopresidente acrescenta às suas tarefas administrativas, previstas na Constituição, um poder legislativo em detrimento do Congresso”.

O principal DNU é famoso na Argentina: o número 70 de 2023, que Milei ditou poucos dias depois da posse e inclui a reforma de fato de centenas de leis, desde aquelas que regulamentam a medicina privada até as normas trabalhistas. “O presidente disse que seria um espião dentro do Estado para destruí-lo”, cita Ferreyra. “São palavras dele, não minhas. Por isso, não exagero quando digo que o seu objetivo é destruir a Constituição Federal.”•


*Martín Granovsky é um jornalista argentino. Formado em História, é colunista do jornal Página/12, editor da revista digital Y Ahora Qué e analista do programa político de televisão QR. Ele ganhou duas vezes o Prêmio Rei de Jornalismo
da Espanha. Foi funcionário da Chancelaria argentina entre 2020 e 2023. Lecionou o curso Brasil Atual no Instituto do Serviço Exterior Nacional.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Motosserra a toda’

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