Mundo
Mortes cruzadas
Em meio a violência inédita, os eleitores escolhem o presidente e os parlamentares para um mandato tampão


Em maio, sem apoio popular e ameaçado por um processo de impeachment, o presidente Guillermo Lasso recorreu a um dispositivo constitucional conhecido como “morte cruzada”. Dissolveu o Parlamento, abdicou do direito de disputar a reeleição e convocou eleições gerais antecipadas. À revelia de Lasso, a expressão ganharia contornos realistas. Em uma campanha marcada pelo medo, a violência e a interferência do crime organizado como nunca antes, o assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio, em 9 de agosto, 11 dias antes do primeiro turno, sintetiza o clima político e social no país.
O mais grave atentado em décadas demonstra o descontrole da segurança e o poderio da criminalidade. “Nos últimos anos, o crime penetrou nas instituições e nos grupos econômicos e desatou uma escalada de terror com pistolagem, extorsões, tráfico, assaltos e violência, sem que haja resposta governamental. Nossa situação é muito parecida com aquela enfrentada pela Colômbia nos anos 1980, com a diferença de não sermos produtores de drogas”, compara Carol Murillo, socióloga e professora da Universidade Central do Equador.
Antes do assassinato de Villavicencio, jornalista famoso por denunciar casos de corrupção, outros políticos haviam sido alvejados, entre eles Augustín Intriago, prefeito de Manta também vítima de homicídio. A explosão das mortes e os reiterados massacres carcerários retratam a violência dominante. Na segunda-feira 14, outro crime político aumentou o clima de incerteza. Pedro Briones, ligado ao partido do ex-presidente Rafael Correa, foi morto. “Os índices de homicídio batem recorde a cada ano e podem chegar a 38 por 100 mil habitantes, o que nos converteria na nação mais violenta da América Latina. Nos últimos anos, quase 500 equatorianos morreram devido a enfrentamentos entre facções nos presídios. Falta investimento em segurança, equipamento para os policiais, afora as denúncias de que narcogenerais atuam impunemente”, afirma o jornalista Daniel Granja.
A desconfiança em relação à honestidade das forças de segurança locais, além de um inegável vira-latismo, levou Lasso a convidar o FBI, a polícia federal norte-americana, a liderar as investigações do assassinato de Villavicencio, cuja escolta falhou no momento dos disparos (foram mais de 30 tiros, três na cabeça do candidato). Seis suspeitos foram presos desde então, todos de origem colombiana, e um morreu em confronto com policiais.
Apesar da consternação e do clima de apreensão, Lasso e a Justiça Eleitoral mantiveram o primeiro turno para o domingo 20, assim como o último debate presidencial, ocorrido uma semana antes. Os sete concorrentes se apresentaram ao eleitorado e os relatos indicam uma leve vantagem no encontro televisivo da líder nas pesquisas, a advogada correísta Luisa González. Segundo os últimos levantamentos, o porcentual de indecisos beira os 50%.
A legislação proíbe a realização de pesquisas dez dias antes da votação e o veto dificulta medir a migração do apoio de Villavicencio, que aparecia com cerca de 10% nas enquetes. “Villavicencio foi um camaleão, nunca teve posição ideológica. Dizia ser de esquerda ou de extrema-direita, a depender da conjuntura. Foi sindicalista, mas apoiou o ex-presidente Lenín Moreno e Lasso. É possível colocá-lo em todos os extremos, mas a única posição que nunca mudou é a crítica a Correa”, resume o assessor parlamentar Juan Aguilar.
Não se sabe qual o impacto no voto do assassinato do candidato Villavicencio
A se levar em conta a descrição de Aguilar, os favoritos a amealhar o apoio dos possíveis eleitores de Villavicencio são Otto Sohnlozer, ex-vice-presidente no governo Moreno, e o empresário liberal Jan Topic. O também jornalista Christian Zurita, escolhido para substituir Villavicencio na chapa do Movimento Construye, espera, no entanto, galvanizar as intenções de voto do ex-colega de partido. “É óbvio que um acontecimento dessa ordem move o cenário. Além de influenciar o resultado, provoca a disseminação de uma campanha suja promovida por setores de direita que pretendem conquistar os simpatizantes da vítima e insuflar o ambiente de polarização”, avalia Murillo.
González, por sua vez, aposta no voto ideológico dos militantes da Revolução Cidadã para chegar ao segundo turno. Se vencer as eleições, será a primeira presidenta do Equador. A advogada enfrenta, no entanto, a rejeição a Correa, que vive exilado na Bélgica após denúncias de corrupção ao estilo da Lava Jato. “Apesar de ser a única candidata, González não conseguiu captar a maioria dos votos femininos, menos ainda das mulheres mais jovens. Yaku Pérez é o candidato mais progressista por sua história e por ter construído um plano de governo ao lado de organizações sociais, especialistas e acadêmicos”, defende a psicóloga Cristina Cachaguay.
Uma das principais lideranças indígenas do país, Pérez não consegue unificar o apoio dos movimentos étnicos, conhecidos por sua capacidade de mobilização, sobretudo a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e o Pachakutik. “Nenhuma candidatura representa na íntegra nossa agenda baseada no desenvolvimento de um Estado plurinacional, por isso uma parte votará nulo. A escolha se dará entre propostas com viés progressista ou a continuação do modelo que impõe o capital sobre o ser humano”, afirma Fernando Cabascango, ex-deputado pelo Pachakutik.
O acesso à saúde, cujas carências ficaram mais evidentes durante a pandemia, e a geração de empregos são outros temas centrais da campanha, além das mudanças climáticas. A população decidirá, entre outros pontos, se aceita ou não a exploração de petróleo na região de Yasuní, área de quase 100 mil hectares reconhecida pela biodiversidade. Em que pese o curto tempo de mandato, de aproximadamente 18 meses, os próximos eleitos para a Presidência da República e Assembleia Nacional enfrentarão um dos períodos mais desafiadores da história recente do Equador. Em pouco mais de um ano e meio, os 13,5 milhões de eleitores voltarão às urnas com mais medo ou esperança. Antes disso, o provável segundo turno do curto mandato está agendado para 15 de outubro. •
Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mortes cruzadas’
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