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Mira recalibrada
Antes de atingir Alexandre de Moraes com a Lei Magnitsky, Trump livrou aliado extremista da Hungria


Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA, telefonou para Budapeste em 14 de abril. Do outro lado da linha, atendeu o ministro das Relações Exteriores da Hungria, Péter Szijjártó. Rubio tinha uma boa notícia para transmitir ao interlocutor: as sanções contra Antal Rogán, chefe de gabinete do governo húngaro, estavam revogadas a partir daquele momento.
A Lei Magnitsky havia sido acionada contra Rogán três meses antes daquele telefonema. Os responsáveis pela medida foram Antony Blinken, antecessor de Rubio no Departamento de Estado, e o então presidente Joe Biden. O governo democrata dos EUA havia aplicado as sanções para pressionar e constranger o governo de extrema-direita da Hungria, sob a alegação de que o país registrava, à época, “a pontuação mais baixa entre todos os Estados membros da União Europeia e também no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional”.
Em termos duros, os democratas afirmaram que o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, comandava uma “cleptocracia com uma notável falta de transparência e equidade em acordos de gastos públicos e privados”. Para justificar a aplicação da Lei Magnitsky, apontaram que Rogán estava à frente de um megaesquema de corrupção. Os recursos públicos teriam sido desviados não apenas para o bolso do chefe de gabinete, mas também para os cofres do partido de extrema-direita Fidesz, de maneira a financiar um projeto de poder de longo prazo – ao qual Biden e Blinken se opunham.
Além dos argumentos estritamente econômicos, a aplicação da Lei Magnitsky contra Rogán também estava ligada ao papel que a Hungria vinha desempenhando na guerra da Ucrânia. Sob o comando de Orbán, o país – integrante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, portanto, aliado militar dos EUA – adotava uma postura ambígua: criticava o apoio ocidental aos ucranianos e manifestava posições mais alinhadas às do presidente da Rússia, Vladimir Putin. Rogán, como chefe de gabinete, tinha controle sobre os serviços de informação da Hungria, e o embaixador dos EUA em Budapeste, David Pressman – nomeado por Biden –, suspeitava que ele estivesse repassando material sensível entre os dois lados.
A decisão, tomada em janeiro, durou apenas três meses, até que Trump assumisse seu segundo mandato. A notícia sobre a suspensão da aplicação da Lei Magnitsky já era esperada por Orbán. O maior expoente da extrema-direita europeia sabia que, assim que Trump retornasse à Casa Branca, os dois países voltariam a cooperar. Era uma questão de tempo, e o telefonema de Rubio apenas confirmou essa certeza.
A aplicação da Lei Magnitsky contra o alto funcionário do governo húngaro havia se tornado “inconsistente com os interesses da política externa norte-americana”, segundo comunicado do Departamento de Estado, publicado logo após a ligação de Rubio. Com a mudança de governo em Washington, após a saída de Biden, os antigos valores – entre eles o apoio às democracias e o combate a governos de extrema-direita no Ocidente – passaram a ser considerados “inconsistentes” com a nova visão de mundo.
Historicamente, o governo norte-americano abusa das sanções para punir desafetos
Três meses após suspender as sanções contra os extremistas húngaros, o mesmo Marco Rubio anunciaria, em 30 de julho, medidas contra o ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Alexandre de Moraes. A mesma Casa Branca que havia revogado a aplicação da Lei Magnitsky contra Rogán passou a direcioná-la contra o magistrado brasileiro. Essa mudança de alvo expõe com nitidez o objetivo do atual governo dos EUA: fortalecer aliados de extrema-direita, como o húngaro Viktor Orbán e o brasileiro Jair Bolsonaro, e punir governos democráticos e de esquerda.
Assim como no caso de Alexandre de Moraes, a aplicação da Lei Magnitsky contra Rogán também representou um exercício de arbítrio e intervenção unilateral por parte do governo norte-americano, que não demonstra qualquer constrangimento em adotar medidas hostis contra autoridades estrangeiras que não rezam em sua cartilha. No caso húngaro, houve ainda o agravante de que a sanção foi decretada no curto intervalo entre a derrota eleitoral de Biden e a posse de Trump. Ou seja, a medida foi tomada no apagar das luzes da administração democrata – e já se sabia, à época, que poderia ser revogada assim que os republicanos reassumissem o poder.
No caso brasileiro, a inclusão de Moraes na Lei Magnitsky se deve não apenas aos processos que o juiz do Supremo vem conduzindo contra a extrema-direita brasileira, mas também às decisões que vêm sendo tomadas contra as big techs norte-americanas que operam no Brasil. Trump e Rubio justificam as sanções em nome da proteção da liberdade de expressão, dos direitos humanos e da democracia – argumentos altruístas semelhantes aos que a administração Biden usou para punir Rogán em janeiro.
Seja sob Biden ou Trump – ou ainda sob o governo Barack Obama, que, em 2012, sancionou a Lei Magnitsky, criada por uma iniciativa bipartidária, no Congresso –, os EUA vêm atribuindo para si mesmos essa prerrogativa de sancionar integrantes de governos estrangeiros, à revelia de decisões que poderiam ser tomadas de maneira multilateral em órgãos mais representativos, como as diversas instâncias das Nações Unidas ou, no caso das Américas, pela Organização dos Estados Americanos (OEA).
A metralhadora giratória de ações hostis e unilaterais esteve, até sete meses atrás, voltada para o combate à extrema-direita na Hungria. Agora, sob Trump, mira numa das maiores democracias do mundo: o Brasil. Sob o pretexto de defender direitos, serve para tentar livrar da cadeia um ex-presidente envolvido numa tentativa frustrada de golpe de Estado. •
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mira recalibrada’
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