Mundo

Missão brasileira no Haiti completa 10 anos em meio a incertezas

Parte militar da Minustah é questionada, enquanto o Brasil é criticado por não ter plano de saída do país

Integrante da Minustah pendura bandeira conjunta do Brasil, da ONU e do Haiti em centro de combate ao cólera, em Porto Príncipe, capital do Haiti, em 25 de abril. Na imagem abaixo (de Logan Abassi), crianças brincam na favela de Cité Soleil, também na capital haitiana, em agosto de 2013
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Em 2004, quando recebeu o convite para liderar a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), o Brasil se via diante de uma oportunidade real de se projetar internacionalmente e assumir liderança no cenário regional. À época, o Haiti vivia o inferno, marcado pela violência entre gangues rivais e alto nível de instabilidade consequente da renúncia de Jean-Bertrand Aristide, que teve a vitória eleitoral de 2001 contestada pela oposição. Era a primeira vez que o Brasil tinha condições plenas de assumir uma missão de estabilização de paz, depois da expectativa frustrada em relação à de Timor Leste, minada pela crise econômica de 1999.

Quando os capacetes azuis brasileiros chegaram ao país da América Central a situação de vulnerabilidade era tamanha que o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, chegou a dizer que seria uma missão de longo prazo: com data para começar, mas não para acabar. Hoje, dez anos depois da liderança do Brasil na missão militar, a relevância da Minustah é reavaliada. Apesar de reconhecerem a importância da missão para a estabilidade no Haiti, especialistas questionam a permanência das tropas, e indicam a necessidade da criação de um planejamento para deixar o país em condições de se manter sozinho.

“Do ponto de vista internacional, se em um primeiro momento o Brasil ganhou projeção e respeito participando da Minustah e a comandando, hoje o País está desgastado e vêm perdendo essa projeção justamente porque não consegue sair do Haiti”, avalia Suzeley Kalil Mathias, integrante do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Concordo que a missão, pelo menos a missão militar, perdeu sua razão de existir. Tanto o Brasil, e principalmente a ONU, deveriam ter planejado como seria a saída do país.”

Se em 2004 o Brasil gastou mais de 148 milhões reais com a Minustah, em 2010 (quando o Haiti foi devastado por um terremoto de 7 graus na escala Richter) esse valor pulou para 673,88 milhões de reais, e em 2013 ultrapassou 179,69 milhões de reais. No total, desde o início da missão, segundo o Ministério da Defesa – que se baseou em dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) –, o Brasil investiu quase 2,12 bilhões de reais na missão do Haiti, tendo recebido de volta da ONU 742,72 milhões de reais (333,88 milhões de dólares).

“Creio que o custo financeiro é maior e mais difícil o retorno, razão pela qual, de uma forma geral, as missões de paz não são felizes nessa questão”, avaliou Mathias, a professora da Unesp. “É preciso enviar outro tipo de contingente, especializado em reconstrução de instituições, particularmente as de empoderamento da sociedade civil. É preciso criar alternativas de desenvolvimento e de segurança.”

Por decisão do Conselho de Segurança da ONU, em 2004 a Minustah recebeu um total de 7.500 militares e 1.897 policiais das Nações Unidas, oriundos de 20 países, incluindo Argentina, Canadá, Croácia, Filipinas, França e Jordânia. Desde então, a parte militar da Minustah sempre teve como comandante um militar brasileiro – atualmente o cargo é ocupado pelo José Luiz Jaborandy Junior.

Militares e especialistas em defesa que acompanham de perto os desdobramentos da missão veem o Haiti como um grande laboratório para o Brasil. “A Minustah apresentou para a política de defesa e das Forças Armadas a possibilidade de treinamento e maior expertise internacional. Com a missão, o Brasil ganhou reputação internacional nessa parte militar. E o resultado disso foi a escolha do general Carlos Alberto dos Santos Cruz para comandar a missão de paz no Congo”, afirma Rafael Villa, pesquisador de temas ligados a defesa, segurança e América Latina na Universidade de São Paulo (USP). “É um grande ganho político”, diz.

Atualmente, o Brasil conta com 1.173 homens de um total 5.824 soldados da força de paz. Compõem a missão ainda 2.425 membros da Polícia da ONU, 437 civis internacionais, 1.302 civis haitianos e 195 voluntários das Nações Unidas. Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, o governo brasileiro decidiu reforçar o efetivo militar no país e criou um novo batalhão brasileiro – o Brabatt 2. À época, o país assistiu à chegada de 20 mil militares de 10 países diferentes, em meio ao cenário de destruição: 240 mil mortes, 1,5 milhão de desabrigados, 600 mil desalojados, e a fuga de 4 mil presos.

Comandante do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), o coronel do Exército José Ricardo Vendramini vê no terremoto de 2010 um divisor de águas no andamento das operações da missão. Segundo ele, o tremor derrubou as estruturas físicas e sociais do Haiti, exigindo um recomeço. “A missão foi sacudida e o país, destruído. Após seis anos de continuada ascensão, a Minustah teve de partir quase do zero de novo”, disse. Para ele, trata-se de uma missão com quatro anos e não com dez.

Haiti Crianças brincam em Cité Soleil, favela em Porto Príncipe, capital do Haiti, em agosto de 2013

Conselho de Segurança. Dentre as diversas motivações que levaram as tropas brasileiras ao Haiti, uma delas diz respeito ao peso do Brasil dentre os principais tomadores de decisão no xadrez geopolítico mundial. O desejo por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU é um sonho antigo do Brasil, que remonta à era Vargas. Assim, a ida ao Haiti foi vista como mais um argumento para o País pleitear uma posição fixa no órgão, ainda que sua tentativa não tenha sido suficiente. “Chefiar a missão militar é uma forma de o País dizer que merece ser tratado como uma liderança, apesar das resistências regionais, e que tem condições morais e até econômicas de ser liderança”, observou Mathias, da Unesp.

Se no campo da geopolítica e da diplomacia entre Estados esse objetivo não foi plenamente alcançado como gostaria do Brasil, dentro do Haiti o País alcançou uma relevância de repercussões inesperadas. “O fato de o Brasil ter ido lá e demonstrado poder fez com que os haitianos passassem a enxergá-lo como uma possibilidade de melhorar suas vidas”, explicou Villa, da USP, sobre a rota migratória pela qual 25 mil haitianos chegaram ao Brasil. “Antes, o destino principal dos haitianos era os Estados Unidos ou, em alguns casos, países vizinhos como a República Dominicana. Agora o Brasil entra como nova possibilidade.”

Desafios. Criada com o objetivo de dar assistência ao governo de transição, particularmente à Polícia Nacional Haitiana, a Minustah deve ser encerrada quando o país centro-americano atingir certo grau de autonomia econômica e estabilidade política. Os militares brasileiros, no entanto, não sabem precisar quando e como isso pode ser alcançado, o que prolonga o tempo da operação militar. “Os objetivos conjuntamente traçados pelo governo haitiano e pela missão ainda não foram atingidos. A saída precoce de uma missão de paz pode ocasionar o recrudescimento do conflito e a volta da insegurança social. A Polícia Nacional Haiti, por exemplo, ainda não foi suficientemente treinada pela Minustah e ainda não atingiu os efetivos numéricos necessários para prover a segurança para todo o país”, observou o coronel Vendramin. “A presença da força militar ainda se faz imprescindível.”

O Haiti é atualmente o país mais pobre do Ocidente, com cerca de 80% da população de 9,9 milhões de habitantes abaixo da linha da pobreza. O terremoto de 2010, de acordo com dados do governos dos Estados Unidos, infligiu ao país um estrago total de 17,3 bilhões de reais (7,8 bilhões de dólares). Cerca de dois quintos dos haitianos dependem da agricultura, sendo a maioria em escala de subsistência.

Em palestra na última quarta-feira 28 na USP, Antonio Ramalho, professor da Universida de Brasília e assessor do Ministério da Defesa, disse visualizar dois possíveis caminhos para o Haiti. “Ou haverá o fortalecimento da Polícia Nacional e do Estado de direito ou o Conselho de Segurança decidirá, em outubro deste ano, pelo fim da Minustah. “No entanto, tenho dúvidas sobre o interesse da elite haitiana em promover a estabilidade”, ressaltou, ao lembrar que a saída das tropas brasileiras do Haiti pode começar de forma gradual a partir de 2016. Mas, mesmo que isso ocorra, afirma, “tínhamos de ter um plano de saída mais claro desde o início.”

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