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MH17: “Os russos comuns estão horrorizados”

Em Moscou circulam teorias da conspiração, juntamente com desprezo pelos separatistas e um certo apoio a Putin

Mulher coloca flores em memorial às vítimas do MH17 na embaixada da Holanda em Moscou
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Por Natalia Antonova, de Moscou

“Então os americanos vão nos atacar agora?” No consultório do meu dentista em Moscou, geralmente sou eu quem faz perguntas nervosas. Mas, um dia depois de o voo MH17 ter sido derrubado, todo mundo aqui – incluindo o dentista, a recepcionista e o técnico que conserta o computador da recepcionista – quer que eu lhes diga o que vai acontecer agora. “Você é jornalista e provavelmente sabe coisas que não sabemos”, diz a recepcionista. “E eu não confio na televisão”, conclui.

Depois do horrível incidente que tirou a vida de quase 300 pessoas, daqui parece que um conflito local se transformou em uma tragédia de proporções globais. Como comentou o observador político Konstantin von Eggert no jornal Kommersant “não serão [os rebeldes] que pagarão o preço, será o Kremlin. Porque, apesar das muitas negações feitas por deputados, o mundo inteiro acredita que Moscou seja o principal patrocinador e protetor [dos rebeldes]”.

Enquanto isso, os moscovitas comuns estão manifestando horror diante da tragédia, mesmo enquanto acreditam nas conspirações mais malucas. Meu dentista, Dmitry, já foi militar e manifesta desprezo pelos rebeldes, a quem se refere como “idiotas indisciplinados”. Ao mesmo tempo, diz que há um “outro lado” no desastre. “Quem se beneficia de retratar a Rússia como o monstro? Os americanos”, diz. “Eles querem fazer guerra com o mundo inteiro.”

Em minha loja local de utensílios domésticos, o jovem gerente Vitaly faz uma narrativa sobre como “existe uma guerra de informação” e que os Estados Unidos têm toda a capacidade de incriminar “a Rússia ou os rebeldes”. Mas ele também tem um tremendo desprezo pelos separatistas. “Nem sequer sei quais são seus objetivos. Tudo parece sem sentido”, diz. “Eles estão tentando arrastar a Rússia para a terceira guerra mundial. Que se fo…m!”

Uma mistura curiosa de teoria da conspiração com críticas aos separatistas surge quase todas as vezes em que começo uma conversa sobre o destino do voo MH17. “Mesmo que eles não tenham derrubado o avião, não simpatizo com esses imbecis”, diz Konstantin, um homem de meia idade que se descreve como “militar aposentado”, na fila de um supermercado.

“Os separatistas significam prejuízos demais – qualquer bom tático lhe dirá isso”, diz Konstantin em tom de confidência. Como muitos russos, ele acredita que o novo governo ucraniano é violentamente antirrusso, pró-ocidental e corrupto. Mas ele não acredita que a Rússia teria assumido o “risco político” de apoiar os rebeldes.

Para Maria, de 30 de poucos anos e que diz trabalhar no rádio, o desastre do MH17 invocou “sentimentos de um apocalipse próximo. É muito ruim que tantas pessoas estejam mortas”, diz. “Mas e se a guerra piorar e mais pessoas morrerem? Até onde irá tudo isso?”

Em contraste marcante com as manchetes dos tabloides ocidentais, que falam no “míssil de Putin” e nas “vítimas de Putin”, a maioria das pessoas com quem eu converso em Moscou não acusa diretamente o presidente russo pelo desastre. E isso tem muito a ver com o fato de o envolvimento da Rússia no leste da Ucrânia ser percebido como caótico e sem ânimo, para começar. Diferentemente da anexação da Crimeia, em que tropas russas bem treinadas assumiram o controle da situação imediatamente, o leste da Ucrânia é no máximo uma aventura nebulosa.

“A ideia de que os rebeldes estão se reportando diretamente a Putin é simplesmente engraçada”, diz Konstantin. “Não sei se há algum tipo de cadeia de comando estabelecida lá.”

Vitaly é mais veemente, e chama o leste da Ucrânia de um “fracasso” desde o início, culpando os assessores de Putin por “não dar assessoria adequada”. Vitaly não compreende como o presidente, a quem ele dá crédito por levantar a Rússia “de seus joelhos” depois dos turbulentos anos 1990, poderia ter-se envolvido no leste da Ucrânia – a menos que “os fatos tenham sido distorcidos para ele”.

Mesmo entre os fortes críticos de Putin, há uma sensação de que o presidente russo não percebeu o que estava se formando. “Eu nunca votei [em Putin], ele não é o meu homem, e não concordo com a direção em que está levando o país”, diz-me Yekaterina, uma vizinha aposentada. “Mas isto é o horror absoluto, uma tragédia chocante, não posso imaginar que ele fizesse isso.”

“Poucas pessoas querem culpar diretamente Putin”, diz Maria. “Faz sentido. A Rússia melhorou, mas ainda é um país caótico. É importante que as pessoas acreditem pelo menos em uma pessoa. E não se pode descartar o fato de que a liderança ucraniana não é 100% confiável.”

Poderíamos pensar que em um país onde ocorrem frequentemente desastres devido à falta de responsabilidade e má avaliação, um número maior de pessoas aceitaria que o que aconteceu com o MH17 foi provavelmente um erro, quase banal em seu horror. Mas para muitos moscovitas a ideia de que houve algum tipo de conspiração parece quase reconfortante, como uma droga. Tanto a televisão como os comentaristas online estão ávidos para oferecer grandes quantidades da droga neste momento, salientando teorias bizarras de que as vítimas do acidente “podiam estar mortas há semanas” e especulações mais mundanas das forças armadas ucranianas tentando encobrir a verdadeira causa do desastre. “É muito difícil para mim aceitar que tudo isso seja apenas um erro de alguém”, diz Vitaly. “Não sei se consigo.”

Nada disto impede que as pessoas se identifiquem com as vítimas do MH17. “Ouvi dizer que havia muitas crianças”, disse Konstantin. “Crianças que provavelmente nunca ouviram falar da Ucrânia, da guerra ou de qualquer coisa parecida. Os inocentes sempre sofrem.”

*Natalia Antonova é dramaturga e jornalista em Moscou

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