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México busca paradeiro de bebês roubados durante “guerra suja” contra esquerda

Esse período sombrio lembra o drama vivido por mulheres que tiveram seus filhos raptados durante as ditaduras no Chile e na Argentina

Roberto Martinez segura o retrato da irmã Lourdes, desaparecida em 1974 Foto: RASHIDE FRIAS/AFP
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O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, criou em 2019 uma comissão para localizar ao menos 14 pessoas que nasceram após a detenção de suas mães, ativistas de esquerda, entre 1960 e 1980. Grávidas, as militantes tiveram seus bebês roubados após o parto por grupos militares e policiais, hoje dissolvidos, acusados de graves violações dos direitos humanos. A unidade especializada na busca dessas mulheres e crianças desaparecidas está começando seus trabalhos.

Esse período sombrio da história mexicana ficou conhecido como “a guerra sucia” ou “guerra suja”, e lembra, embora em menor escala, o mesmo drama vivido por milhares de mulheres que tiveram seus filhos raptados durante as ditaduras no Chile e na Argentina.

Nas décadas de 1960 e 1970, as militantes mexicanas da Liga Comunista combateram o Partido Revolucionário Institucional (PRI), de direita, que dominou a política nacional por 70 anos, até o ano 2000. Grupos guerrilheiros estudantis de esquerda travaram uma luta ferrenha contra dois governos do PRI em particular, dos presidentes Luis Echeverría e José López Portillo. O PRI adotou uma “política de Estado” contra os adversários do regime, que incluiu assassinatos, prisões clandestinas e sequestros de bebês nascidos em cativeiro.

Durante a repressão, cerca de 500 opositores políticos e estudantes desapareceram, segundo a Comissão Nacional de Direitos Humanos. Para pressionar o Estado a encontrá-los, alguns parentes se juntaram à luta de organizações que buscam dezenas de milhares de desaparecidos no México a partir de 2006, quando uma controvertida ofensiva antidrogas foi implantada e a violência do crime organizado disparou.

Aposentado busca irmã desaparecida aos 23 anos

O professor aposentado Roberto Martínez, de 65 anos, tem a esperança de encontrar seu sobrinho ou sobrinha. Lourdes Martínez, irmã de Roberto, foi detida em junho de 1974 na cidade de Culiacán (noroeste), quando tinha 23 anos. Ela estava grávida e integrava a guerrilha Liga Comunista 23 de Setembro, que foi dissolvida em 1983 após desafiar o PRI durante uma década.

“Espero do fundo da minha alma que as autoridades me ajudem a encontrar meu sobrinho ou sobrinha e sua mãe”, afirmou Martínez. “Gostaria de dizer a todos os que possivelmente nasceram nas mesmas circunstâncias quanto suas mães deram por este país”, destacou.

Crueldade de Estado

Esta é a primeira vez que um governo mexicano procura pessoas que podem ter sido adotadas após o desaparecimento forçado de suas mães. A comissão tenta localizá-las analisando arquivos oficiais e testemunhos.

“Organizar partos clandestinos com o objetivo de se apropriar das crianças é extremamente cruel”, disse Javier Yankelevich, diretor da unidade especializada na busca, vinculada à comissão. Yankelevich conclama aqueles que “podem ter dúvidas sobre sua identidade” a “explorar a possibilidade de que a história que lhes foi contada não seja a deles e se aproximar das instituições” para esclarecê-la.

Camilo Vicente, autor do livro “Tempo Suspenso: Uma história dos desaparecimentos forçados no México entre 1940-1980”, recolheu indícios de que ocorreram adoções irregulares naquelas décadas, embora não nas mesmas proporções do que aconteceu na Argentina e no Chile. A organização argentina Avós da Praça de Maio estima que 500 bebês foram roubados durante a ditadura argentina (1976-1893), enquanto no Chile o número chega a 8.000 crianças, segundo o Tribunal de Apelações.

“Mesmo que haja um ou dois casos, é obrigação do Estado (mexicano) procurá-los” e “dizer quantas crianças morreram em operações militares ou sofreram torturas, outra parte ocultada sobre aquele momento de contrainsurgência até hoje negada no México”, afirmou Vicente.

Final feliz

Um desses episódios é o de Roberto Antonio Gallangos e sua esposa Carmen Vargas, integrantes da Liga Comunista. Eles foram presos em diferentes operações em 1975 e depois desapareceram. Na época, os filhos Lúcio Antonio, de 4 anos, e Aleida, de 2 anos de idade, foram separados um do outro e ficaram sob cuidados de amigos do casal.

O menino foi sequestrado por agentes durante uma operação em que foi ferido. Já Aleida foi entregue a uma família pelo homem que cuidou dela e que morreu sem revelar detalhes da história.

Lucio Antonio foi deixado em um orfanato em 1976. A família que o adotou o batizou com o nome de Juan Carlos Hernández.

Após uma denúncia da imprensa e por iniciativa de seu pai adotivo, Aleida descobriu sua verdadeira identidade em 2001. Em 2004, depois de superar obstáculos de autoridades que se recusaram a abrir os arquivos oficiais, ela localizou seu irmão em Washington, onde ambos vivem agora.

“As pessoas diziam que parecia que eu estava enlouquecendo”, disse Aleida à AFP, recordando esse período de busca e intensas dúvidas.

Os dois irmãos esperam que a Corte Interamericana de Direitos Humanos obrigue o México a localizar seus pais, que o país incorpore a “guerra suja” à história oficial e pague as indenizações devidas às vítimas da repressão política.

“Sou duas vezes vítima, porque sou parente de um desaparecido e um desaparecido ao mesmo tempo”, denuncia Juan Carlos. O mexicano diz que a descoberta de sua verdadeira identidade lhe trouxe “paz”.

Com informações da AFP

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