Mundo

Meu pai, um torturador

Filhos de agentes da ditadura na Argentina formam um coletivo para expiar os crimes e defender os direitos humanos no país

Consciência. Analía Kalinec, ao contrário das irmãs, rompeu relações com o pai, o “Doutor K”, condenado à prisão perpétua. (FOTO: Arquivo pessoal)
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Fazia frio em Buenos Aires naquela manhã de 31 de agosto de 2005. Analía Kalinec embalava o filho de pouco mais de 1 ano e meio no colo quando o telefone tocou. Sua mãe avisava que o marido, o comissário da polícia federal Eduardo Emílio Kalinec acabara de ser preso. Tratou de acalmá-la. “Não se preocupe. Fique tranquila que ele vai sair logo. Foi um equívoco. É só uma questão política.”

Aos 25 anos, Analía não entendia os motivos que podiam ter levado seu pai à prisão. Um pacato cidadão católico, filho de migrantes – de pai tcheco e mãe espanhola –, zeloso, dedicado à família e ao trabalho. Em casa, a mulher e as quatro filhas levavam uma vida típica de classe média argentina. Nos fins de semana frequentavam o clube dos policiais. No dia a dia, não comentavam sobre política ou questões sociais nem falavam das sucessivas crises econômicas. Muito menos sobre o trabalho do pai. “Lembro que meu pai tinha o hábito de comer sozinho, assistindo à televisão, enquanto eu, minhas irmãs e minha mãe comíamos na cozinha.” Era severo em suas decisões sobre a vida familiar. “O que ele dizia, não havia questionamentos.”

No dia seguinte, a família foi visitá-lo. Kalinec insistia em afirmar que era inocente. Dizia que muitas mentiras seriam contadas, mas que não tinha motivos para se arrepender. “Repetia que durante toda a sua vida de policial lutou em uma guerra, e que agora tudo o que acontecia na Argentina devia-se à chegada de revanchistas ao poder”, em clara alusão ao então presidente Néstor Kirchner. “Até então, eu nem sequer poderia imaginar que meu pai era um torturador. Pensava comigo ‘podem julgá-lo, pois há um erro nesse processo. Ele é inocente’”, conta Analía. Até aquele dia, para a jovem estudante de Psicologia, a ditadura argentina não passava de um fato histórico. Embora não fosse militante, nutria certa simpatia pelo movimento das mães da Plaza de Mayo, mulheres que lutavam e protestavam para reencontrar os filhos desaparecidos. Durante três anos, buscou entender o que aconteceu em seu país, sem conceber ou acreditar, no entanto, que seu pai havia cometido crimes contra a humanidade.

 

Em 2008, o processo foi levado a julgamento. Kalinec estava entre os primeiros 15 acusados no banco dos réus. Todos fizeram parte do chamado circuito ABO, sigla que identificava os centros clandestinos de tortura e terror Atlético, Banco e Olimpo. Kalinec atuava no Olimpo, onde ficou conhecido pelo codinome Doutor K, em alusão à sala de tortura conhecida como “centro cirúrgico”. Analía assistiu à primeira sessão do júri e, depois, leu o processo na íntegra. Precisava ter certeza absoluta sobre tudo que viu e ouviu. “Li com muita velocidade e ainda pedia ‘que o nome dele não apareça, por favor, que o nome dele não apareça’. Não queria pular nenhuma linha para ter certeza de que não havia perdido nada, mas, de repente, apareceu… Kalinec. Lembro claramente daquele momento.” Conta que tinha conhecimento de que o chamavam de “Doutor K” porque ele havia comentado uma vez, mas depois negou. “Quis saber o motivo do nome. Ele disse que era tratado de ‘doutor’ porque sempre foi muito correto e parecia um advogado.”

O Histórias de Desobedientes reúne mais de cem integrantes

No primeiro julgamento, oito vítimas relataram os horrores do cárcere. Ana María Careaga tinha 16 anos e estava grávida de três meses quando foi levada. O “Doutor K” a chutava toda vez que a via. Em uma ocasião, repreendeu-a aos gritos, por não dizer que estava grávida. “Você quer que eu abra suas pernas e te faça abortar?” Miguel D’Agostino identificou-o como um dos três homens que o submeteram a cinco dias de interrogatório com choques elétricos na “sala de cirurgia”. Delia Barrera foi outra vítima de tortura durante 92 dias. Era o ano de 1977 e ela tinha 22 anos. “Estava encapuzada, havia muitas vozes ao meu redor. Até que uma voz disse ‘comecem’, e começaram a me bater. Fui arrastada pelo cabelo para o que chamavam de “centro cirúrgico”. Havia três salas e podia ouvir quando torturavam outros nas salas ao lado”, descreveu Barrera. “Eles me obrigaram a me despir. Fui amarrada em uma cama de metal. Abriram minhas pernas, prenderam um cabo no polegar do meu pé esquerdo e me fizeram ouvir um barulho. Perguntaram se eu sabia o que era. ‘Você conhece? Bem, agora vai conhecer’. E começaram os choques elétricos.” No total, 181 vítimas o acusaram formalmente de sequestro, tortura e homicídio. Os depoentes disseram que o “Doutor K era temido” nos centros de tortura, “porque era muito cruel”. Delia Barrera, com sequelas físicas e mentais, viveu para contar parte de sua história. Ainda carrega no corpo marcas e cicatrizes do ferrão elétrico, das torturas e dos choques, da violência física e emocional, além das várias tentativas de suicídio.

Porão. O Olimpo era um dos principais centros de tortura em Buenos Aires. Lá ficava o “centro cirúrgico”. (FOTO: Redes sociais)

Assim que teve certeza do envolvimento do pai com a tortura e o terrorismo de Estado, Analía, em suas visitas à prisão, passou a perguntar sobre a verdade. Kalinec insistia em justificar as arbitrariedades sem negá-las de forma objetiva e clara. Ela o confrontava com provas judiciais. Ele alegava que havia cumprido uma missão patriótica, pois a Argentina tinha vivido tempos de guerra. “Alegava que suas ‘ações’ (era assim que se referia às torturas e mortes) foram para defender a pátria e as famílias.” Aos poucos, afastou-se do pai. Eles não se veem desde 2008. Após uma visita, a última, escreveu uma “carta aberta a um repressor” e encaminhou à família. Foi quando aconteceu o rompimento dos laços em definitivo. A mãe e as irmãs – aliás, as duas mais novas também são policiais – não aceitaram a rebeldia. Disseram que ela deveria apoiá-lo, pois ele sempre havia sido o provedor da casa. Analía não aceitou os argumentos e seguiu sua consciência.

Em 2017, em uma parceria com outros filhos de torturadores, nasceu o coletivo Histórias de Desobedientes. “No início, éramos apenas sete, seis mulheres e um homem. Hoje somos mais de cem e temos intenção de ampliar o nosso projeto para o Chile e o Brasil.” O objetivo do coletivo é relembrar e contar a verdadeira história de uma ditadura que matou mais de 30 mil argentinos, discutir politicamente o que se passou nesses anos sombrios e o que ainda necessita ser feito em termos de direitos humanos. O grupo publicou até o momento dois livros. O primeiro, em 2018, Escritos Desobedientes, é um testemunho pessoal dos filhos de pais genocidas para contar suas dores e dilemas. O segundo, Nosotrxs, Histórias Desobedientes, comenta sobre os direitos humanos no país e conta a história da formação do coletivo. Analía está prestes a assinar um contrato com uma editora portenha para publicar outro livro, desta vez sobre sua história pessoal.

Analía Kalinec trava uma disputa judicial com o pai, e espera que ele confesse os crimes

Afastada há mais de seis anos das irmãs, exceto a primogênita, com quem retomou contato em 2019, Analía segue sua luta por justiça social. Cursa o terceiro ano da faculdade de Direito para intensificar seu trabalho. “Se voltasse no tempo, não mudaria nada do que fiz, nem como fiz. Só não gostaria que meu pai tivesse feito o que fez.” Agora, ela enfrenta uma batalha judicial na família. Em 2019, seu pai entrou com uma ação litigiosa para que Analía seja excluída da herança de sua mãe, que morreu em 2015. Alega “razões de indignidade”, que a filha o “difama” e, portanto, “não deve se beneficiar de recursos da família”. A petição foi assinada por suas duas irmãs mais novas. Em resposta ao processo, Analía, em juízo, afirmou que aceitará o que pai e as irmãs pedem desde que ele reconheça sua participação nos crimes da ditadura argentina, admita sua culpa e forneça elementos sobre o destino de suas vítimas. “Agora, aguardo a decisão dele. Sei que tem informações confidenciais sobre os desaparecidos, inclusive de bebês sequestrados e entregues a familiares que apoiavam o regime. Ele está lúcido e sua memória é prodigiosa. Seu silêncio cúmplice e criminoso me machuca muito.” Condenado à prisão perpétua, Eduardo Emílio Kalinec, hoje com 69 anos, cumpre pena no presídio federal de segurança máxima em Ezeiza, nos arredores de Buenos Aires.

Publicado na edição nº 1157 de CartaCapital, em 12 de maio de 2021.

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