Mundo
Memória afetiva
Com Lula, os líderes africanos aguardam o retorno das empresas brasileiras, diz presidente do Instituto Brasil-África


O périplo do presidente Lula por três países da África em agosto foi o primeiro passo para o Brasil reconstruir as pontes com aquele continente, dinamitadas pelo governo Bolsonaro. Movimento essencial na estratégia política e econômica do governo, a retomada do diálogo envolverá política e meio ambiente, mas tem seu primeiro foco na aproximação comercial com os africanos, tema da 11ª edição do Fórum Brasil-África, que acontecerá em 31 de outubro e 1º de novembro em São Paulo, reunindo autoridades, empresários e representantes da sociedade civil. Presidente do Instituto Brasil-África, que organiza o evento, e professor de Relações Internacionais da Universidade de Fortaleza, João Bosco Monte falou ao repórter Maurício Thuswohl sobre os principais aspectos deste novo momento.
Bolsonaro x Lula
O distanciamento do Brasil com a África no governo Bolsonaro foi muito danoso. Durante quatro anos, ele não visitou qualquer um dos 54 países africanos. Com o retorno de Lula, o governo definiu que a África volta a ter atenção. Em Angola, Lula apresentou uma agenda internacional que inclui a África. Isso tem uma simbologia muito importante, porque fala com a África de forma horizontal, dentro da lógica de cooperação Sul-Sul.
O fórum em São Paulo
O Brasil tem muito a ensinar, mas também muito a aprender. O fórum será um ambiente favorável para que essas boas práticas e experiências sejam conhecidas. Temos sido bem-sucedidos ao trazer líderes africanos – chefes de Estado e de governo, ministros e agentes públicos – e também o setor privado e a sociedade civil.
Parceria fundamental
O Brasil precisa deixar de vender matérias-primas e fazer trocas comerciais de produtos com valor agregado. Nesse contexto, a África é uma parceira fundamental por seu tamanho e escala. Estamos falando de um continente que tem 1,4 bilhão de pessoas, uma população jovem que em alguns países chega a 70% e a maior quantidade de terras aráveis do planeta. Se Brasil e África voltarem a conversar, são boas as perspectivas para o futuro.
Povos lusófonos
Há uma ideia generalizada de que o Brasil deve privilegiar os países africanos de língua portuguesa: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Há, porém, outros 49 países a serem considerados. O componente linguístico é relevante, mas não podemos resumir um continente a cinco países.
Possibilidades
Há oportunidades em diversas frentes. A Nigéria tem uma população de 230 milhões, maior que a do Brasil. Não podemos deixar de fora a África do Sul, por sua importância geoestratégica, e o Quênia, por sua localização e relevância na região do Chifre da África. O Egito, país onde 80% da proteína consumida é brasileira, pode ser a passagem para o Norte africano e os países do Golfo. A Líbia pode ser uma grande parceira do Brasil, porque há muito o que fazer no país, desestabilizado desde a morte de Muammar Kadhafi. Lá, o Brasil pode recuperar infraestrutura, aeroportos, rodovias, hospitais. A República Democrática do Congo tem um bioma parecido com o brasileiro e os dois países podem discutir uma agenda que traga os negócios para o centro do debate ambiental. O Marrocos hoje fornece 72% do fosfato que usamos em fertilizantes. Precisamos conhecer as individualidades de cada país. Das dez economias que mais cresceram em 2022, sete estão na África.
Atrativos. “O continente tem 1,4 bilhão de habitantes e a maior parte das terras aráveis do planeta”, observa Monte – Imagem: Arquivo/ITC
Parceiros privados
É preciso envolver o setor privado nesse debate. O governo tem o seu papel, a diplomacia presidencial é importante, mas os empresários precisam ser convidados para tomar parte nos projetos de desenvolvimento e investir. O governo não tem de financiar tudo. Em seus primeiros governos, Lula levou à África empresários que nunca tinham ido lá e muitos foram seduzidos pela importância que o presidente dava à África. Isso pode se repetir.
Empresas brasileiras
A Petrobras e a Odebrecht foram por muito tempo vilanizadas pela Lava Jato, prejudicando os negócios brasileiros na África. Temos agora um novo momento, as empresas que saíram do continente africano precisam retornar. Nas minhas recentes idas à África, as três palavras que eu mais ouvia eram Odebrecht, Petrobras e Lula. O espaço brasileiro ainda está na memória, inclusive afetiva, em muitos países. Esse é um grande ativo comercial. O Instituto Brasil-África lançou um mapa de oportunidades para empresas do Nordeste brasileiro no contexto africano. É uma radiografia para dizer aos empresários que a castanha de caju processada, os móveis, as roupas e as frutas têm espaço nas prateleiras africanas.
Concorrência chinesa
A China tem muito mais recursos e fôlego do que o Brasil ou qualquer outra nação do globo. O Brasil tem outros atrativos. Na África, os chineses nunca produziram alimentos como os brasileiros, nunca se preocuparam com o tratamento de doenças tropicais. Não devemos pensar que o Brasil vai competir com a China. O modelo mais funcional e inteligente seria os dois países entrarem em espaços africanos dentro de suas respectivas capacidades. O Banco dos BRICS tem Brasil e China como sócios e igual poder de decisão, isso é importante. A China chegou à África com um pacote bem definido de investimentos em infraestrutura, ao mesmo tempo que precisava de matérias-primas que a África poderia abastecer. Com o tempo, a relação mudou. Os líderes africanos entenderam que precisavam conversar sob uma nova concertação, a envolver não os países de forma individual, e sim as comunidades econômicas regionais ou a própria União Africana. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memória afetiva’
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