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Matteo Renzi é o homem que salvará a alma da Europa?

Enquanto um surto populista abala as fundações da UE, o jovem premier de centro-esquerda da Itália inverte a tendência. Agora pode definir a agenda em Bruxelas, diz

Matteo Renzi fala com moradores de Trento durante festival de economia realizada na cidade em 1º de junho
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Por Lizzy Davies, em Roma

Matteo Renzi passa correndo pelas portas de madeira dourada. Usa jeans, tênis e camisa com as mangas enroladas. “Hoje estou desengravatado”, ele anuncia, talvez com falsa contrição para um homem muito fotografado de jaqueta de couro.

Sexta-feira esportiva? “Absolutamente”, ele responde em inglês. E sorri. Em um salão com uma longa história e um esquema de cores de uma nota só – dourado –, o contraste de estilo entre o Palazzo Chigi e seu ocupante provavelmente nunca foi mais marcante. Mas, sentando-se em um sofá delicado com pernas reluzentes, o jovem e confiante primeiro-ministro italiano não poderia parecer mais à vontade.

Poucos políticos da corrente dominante viram as eleições europeias da semana passada com algo que não fosse tristeza. De Londres a Paris a Copenhague, os líderes da centro-esquerda e da centro-direita receberam um golpe dos eleitores, que preferiram apostar sua sorte com os populistas, os eurocéticos e a extrema-direita. Em Roma, porém, a história foi diferente. Em sua primeira eleição com Renzi como líder, o Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, superou todas as expectativas e não apenas ficou em primeiro lugar, como teve uma margem surpreendente de quase 20 pontos.

Com quase 41% dos votos, o PD se saiu melhor que qualquer partido italiano desde 1958 e deixou seu principal adversário, o Movimento Cinco Estrelas (M5S), anti-establishment, na poeira. Ele conquistou mais votos que qualquer outro partido na União Europeia e tornou-se a segunda maior força no Parlamento Europeu.

Depois de anos de censuras, humilhações e punições, a Itália estava de volta ao palco europeu, com a credibilidade restaurada – segundo disse o governo. E Renzi, de 39 anos, que menos de seis meses atrás era um ambicioso prefeito, se vê não apenas primeiro-ministro como um dos mais importantes defensores da Europa em uma união temerosa e abalada pela crise.

Ao chegar a Bruxelas na semana passada, Renzi foi recebido por Angela Merkel como “o matador”. Foi elogiado por alguns comentaristas como o único líder que, em meio à aparentemente inexorável saída de François Hollande, tem pulso suficiente para manter a linha de centro-esquerda com a chanceler alemã. Para Renzi é sem dúvida um enorme triunfo pessoal, uma vitória. Ele conquista o mandato popular que não tinha até agora, tendo tomado o poder de um rival no partido no início deste ano.

Mas, como qualquer político inteligente, ele não quer ser visto como alguém que repousa sobre os louros.

“Não acho que o significado das eleições foi o nascimento do líder Matteo Renzi”, disse ele em uma entrevista ao Observer e a quatro outros importantes jornais europeus. “O significado das eleições é: a Itália pode exercer um papel; a Itália não é a última roda do vagão; a Itália não é o fundo da classe. A Itália é um país que, se se modificar, também pode ser um dos líderes da Europa e, nesse sentido, a questão não é buscar eixos privilegiados com certos países e não com outros, mas tentar tirar a Europa da situação de crise em que estamos.”

Em uma espécie de dupla missão, a vitória histórica do PD ocorre não muito antes de a Itália assumir a presidência rotativa da União Europeia, período durante o qual um Renzi reforçado espera poder trabalhar em Bruxelas na mudança que considera necessária para manter vivo o sonho europeu.

“Digo que se quisermos salvar a Europa devemos mudar a Europa. Mesmo em nosso país, os que votaram no PD também pediam uma mudança na Europa”, diz. Ele não acrescenta, porém, que a porcentagem de sua legenda na votação foi superada pelo número de italianos a escolherem agremiações, as quais, em graus variados, fizeram campanhas eurocéticas: o M5S de Beppe Grillo com 21,2%; a Força Itália de Silvio Berlusconi, com 16,8 %, e a Liga Norte, com 6,2%.

Firmemente na lista de tarefas em Bruxelas, diz ele, está a necessidade de “mudar o paradigma da política econômica” – essencialmente um afastamento da austeridade pura. Ele tem “um relacionamento excelente” com Merkel e insiste que a Alemanha “não é um inimigo”, mas um modelo de reforma, de muitas maneiras. Mas “isto não significa que não existe a possibilidade de ter ideias diferentes sobre muitas questões; entre outras coisas, pertencemos a duas famílias políticas diferentes [na Europa]”, adverte.

“Está muito claro hoje o seguinte: o interesse da Alemanha é que a Itália se saia bem. E a Itália tem todas as condições necessárias para se sair bem, desde que o ambiente básico da Europa não se concentre apenas em austeridade, mas também em crescimento; em crescimento, emprego e reforma. Esse é o nosso objetivo. E sem um grande investimento em empregos e em crescimento qualquer medida ligada à austeridade está destinada a fracassar.”

Por enquanto, diz ele, a Europa realiza tarefas mais importantes do que quem consegue emprego: uma maneira clara – acompanhada por um floreio em latim, “Nomina sunt consequentia rerum” – de evitar envolver-se demais na batalha sobre os altos cargos que se abrirão em breve em Bruxelas, principalmente o de presidente da comissão. Ele não disse explicitamente se apoia ou não Jean-Claude Juncker, a polêmica escolha dos democratas-cristãos, que é apoiado por Merkel mas rejeitado por David Cameron. Mas Renzi nota que “é difícil imaginar a escolha de uma pessoa [como presidente da comissão] sem um acordo geral”.

Apesar da vantagem inesperada que a votação da semana passada lhe deu, Renzi está ciente do seguinte: a Itália não terá uma grande influência na Europa se primeiro não conseguir pôr sua casa em ordem. Ele insiste que sua agenda de reformas – destinada a tornar a terceira economia da Zona do Euro mais estável politicamente e eficiente, menos presa pela burocracia e vulnerável à corrupção, mais fértil para o crescimento que se mostrou inatingível durante anos – está “mudando a Itália profundamente”. (Seus críticos dizem que ela mal começou e onde o fez, por exemplo, na modesta reforma trabalhista, ameaça mudar o país para pior, e não para melhor.)

A votação europeia dá a Renzi uma bênção nas urnas de que ele não precisava tecnicamente, mas cuja ausência era muito sentida por alguns eleitores. Quando ele tirou Enrico Letta do poder em fevereiro, em uma rebelião partidária, o então prefeito de Florença e recém-eleito chefe do PD enfrentou uma avalanche de críticas. Vários críticos acharam perturbador o fato de um político, eterno inimigo da velha guarda política, tomar o poder no que eles viam como um simples golpe.

Ainda hoje, essa sugestão irrita. “Não houve um complô – como alguns quiseram sugerir. O governo em questão passou por um processo de esgotamento”, diz Renzi. “Negar isso hoje é muito conveniente mas também muito injusto, e eu sofri demais em um nível pessoal por causa dessa versão dos fatos.”

O que dizer de sua hoje infame entrevista na televisão, gravada pouco mais de um mês antes de ele tomar posse, em que declarou: “Enrico, fique calmo; ninguém quer tirar seu emprego”?

As palavras voltaram a assombrar Renzi durante semanas, na forma cabível, para esse premiê mais amigo do Twitter, de hashtags de desprezo e sátiras no YouTube.

“Eu disse aquela frase porque estava convencido dela”, diz. “Naquela época eu estava empurrando o governo Letta para fazê-lo se mover novamente. Era como um carro cuja bateria se esgotou.”

Renzi é o quarto primeiro-ministro da Itália em menos de três anos. “Não sei se é uma coisa boa ou ruim, mas acho que você não verá outro durante alguns anos”, diz ele, sorrindo.

Se ele liderar a atual coalizão de governo até o fim do mandato, estará no Palazzo Chigi pelo menos até 2018. Mas na Itália isso é um grande “se”. Só um homem liderou um governo depois da guerra em um mandato completo de cinco anos: Berlusconi.

Prejudicado por rachas na centro-direita e pela condenação por fraude fiscal, Berlusconi registrou seu pior resultado na votação da semana passada. O resultado do M5S foi descrito por Grillo como “além de uma derrota”. Mas, especialmente enquanto ele vê as estrelas em ascensão de Nigel Farage no Reino Unido e Marine Le Pen na França, Renzi sabe que, com uma grande maioria ou não, ele não pode subestimar nenhum dos dois.

“Basicamente, se resume a nós: estamos realizando reformas? Estamos a lutar contra o custo da política? Estamos investindo em simplificação? Estamos nas praças? Nesse caso, venceremos”, diz ele.

“Se a política [da corrente dominante] se tornar convencida de que sobreviveu ao perigo e se fechar novamente, o M5S voltará com grande força. Se não tivéssemos feito uma campanha eleitoral entre as pessoas, nas praças – insistente e aberta, de maneira muito forte –, teríamos sido eliminados como aconteceu em outros países.”

A ascensão de Renzi

Dezembro de 2012: Renzi, o prefeito de Florença, falha em sua tentativa de se tornar o líder do PD. Perde a primária para o baluarte do partido, Pier Luigi Bersani

Fevereiro de 2013: o PD de Bersani deixa de aproveitar a vantagem na pré-eleição e entra em semanas de negociações para tentar formar um governo depois das eleições gerais

Março/abril: Bersani diz que não pode formar governo. O nome de Renzi é mencionado como potencial candidato a primeiro-ministro, mas é rapidamente esquecido, enquanto Letta é convidado

Dezembro: Renzi disputa novamente a liderança do PD e vence com grande maioria. Promete trabalhar junto com o governo por reformas

Janeiro de 2014: em meio a críticas frequentes ao governo Letta, ele fecha um polêmico pacto de reforma interpartidário com Berlusconi

Fevereiro: Renzi se move contra Letta e recebe o apoio da liderança do PD. Letta renuncia. Renzi é empossado e torna-se o mais jovem primeiro-ministro que a Itália já teve

Maio: com seu novo líder, o PD tem uma grande vitória nas eleições europeias

Colaboraram Fabio Martini (La Stampa), Andrea Bachstein (Süddeutsche Zeitung), Philippe Ridet (Le Monde) e Pablo Ordaz (El País)

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