Mundo
Máquina enferrujada
Motores da União Europeia, Alemanha e França afundam na crise econômica e política


“Quando a França e a Alemanha avançam, toda a Europa avança. Quando não o fazem, ela paralisa”, afirmou o ex-presidente francês Jacques Chirac há quase um quarto de século, num dos amistosos encontros periódicos entre os dois maiores Estados da União Europeia. Então, o que faria Chirac, morto em 2019, com a situação atual da famosa locomotiva franco-alemã, que desde o início do bloco movimentou grande parte do projeto europeu do pós-Guerra? Ela parece não tanto vacilante quanto completamente quebrada.
Emmanuel Macron nomeou na sexta-feira 13 um novo primeiro-ministro, o leal aliado centrista François Bayrou, que se torna o quarto premier da França neste ano e terá a difícil tarefa de tentar montar um governo estável após o colapso recente do governo mais curto do país desde 1958. Enquanto isso, o déficit do setor público francês está prestes a ultrapassar 6,1% do PIB, mais do dobro do limite da Zona do Euro. A dívida pública é de 110% do PIB e está em alta e os mercados de títulos classificaram a França neste mês como ligeiramente menos confiável do que a Grécia.
Na Alemanha, a coalizão de centro-esquerda, no poder há três anos, desmoronou no mês passado sob o peso de suas próprias contradições ideológicas e a pressão das diversas crises provocadas pela invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia. Quem se tornar chanceler após as eleições de 23 de fevereiro terá de enfrentar a pior economia do mundo, assolada por altos custos de energia e mão de obra, além de burocracia, infraestrutura decadente e expansão digital lenta.
A desaceleração com a China, seu maior parceiro comercial, também foi um golpe para as exportações alemãs, um ponto forte tradicional, enquanto a importantíssima indústria automobilística tem sido lenta no desenvolvimento de veículos elétricos atraentes e agora enfrenta a ameaça de tarifas severas dos Estados Unidos sob o governo de Donald Trump.
Com a França impossibilitada de realizar novas eleições parlamentares até julho, e a Alemanha possivelmente sem um novo governo até junho, a alta temperatura política nos dois países mais influentes da UE certamente prejudicará a tomada de decisões do bloco.
Os dois países respondem por 41% do PIB do bloco
Paris e Berlim são vistas como o eixo central de poder da UE, conduzindo a política e definindo os principais contornos de sua agenda. Com as duas capitais incapazes de tomar grandes decisões políticas por falta de governos fortes, o bloco poderá passar meses ou mais atolado. Os problemas econômicos e fiscais paralelos das duas potências também pesarão muito na União. Alguns analistas acreditam que as duas maiores economias do bloco – respondendo por 41% de todo o PIB de seus 27 integrantes – sofrerão contração econômica em 2025.
O momento não poderia ser pior, com a Europa a enfrentar a volta das políticas de protecionismo dos Estados Unidos sob a segunda Presidência de Donald Trump, com a indústria alemã (em particular) em crise. Não é muito difícil entender como isso aconteceu. Entretanto, descobrir como a França e a Alemanha poderiam sair de suas atuais espirais de ruína política e econômica não é tão fácil.
Quando o governo alemão implodiu no mês passado, os observadores ficaram menos surpresos com sua queda do que espantados por ele ter se arrastado por tanto tempo. No momento em que o chanceler Olaf Scholz demitiu seu turbulento ministro das Finanças, Christian Lindner, em 6 de novembro, devido a uma amarga disputa orçamentária de meses, desencadeou uma série de acontecimentos que, segundo os otimistas, dão ao país uma chance vital de renovação. “Ousaremos investir poderosamente em nosso futuro como um país forte? Garantiremos empregos e modernizaremos nossa indústria? Estamos garantindo aposentadorias estáveis, assistência médica confiável e bons cuidados de enfermagem?”, afirmou um Scholz desafiador na quarta-feira 11.
Avanço. A nazifascista AfD seria a segunda legenda mais votada na Alemanha, apontam as últimas pesquisas – Imagem: AfD Thruringen
A demissão de Lindner deixou a Alemanha com uma aliança minoritária formada pelos Social-Democratas (SPD) de Scholz e os Verdes ecologistas, capaz de formular apenas políticas superficiais até um novo governo ser composto. Na segunda-feira 16, Scholz, historicamente impopular, mas ainda assim candidato de seu partido à reeleição, enfrentará um voto de confiança que ele convocou para desencadear uma nova eleição. Se perder a votação parlamentar, o presidente Frank-Walter Steinmeier dissolverá o Parlamento e a Alemanha embarcará oficialmente numa campanha intensamente truncada, interrompida pelas férias de Natal.
Pesquisa recente situou a CDU/CSU de centro-direita com 31%, seguida pela Alternativa para a Alemanha (AfD) de extrema-direita em 18%, o SPD de Scholz em 17% e os Verdes em 13%. O FDP e a nova Aliança conservadora de esquerda de Sahra Wagenknecht estão ambos pontuando em torno do limite de 5% para representação parlamentar.
A aposta inteligente para o próximo líder da Alemanha está, portanto, em Friedrich Merz, antigo rival de sua colega democrata-cristã mais moderada, Angela Merkel, cujo mandato de 16 anos como chanceler basicamente deixou Merz no limbo político. Ele usou esse tempo para construir uma pequena fortuna nos negócios, notavelmente na unidade alemã da multinacional de investimentos BlackRock. Merz, cujo temperamento acalorado supostamente suavizou-se um pouco com a idade, prometeu tirar a Alemanha da profunda crise econômica ao mesmo tempo que adota uma linha mais dura em defesa, Rússia e migração.
Mas como a aliança de centro-direita CDU/CSU de Merz, assumindo que fique em primeiro lugar, tem pouca chance de ganhar uma maioria absoluta, sua escolha de parceiro de coalizão inevitavelmente diluirá seus planos de reforma econômica. Todos os principais partidos descartaram cooperar com a extrema-direita. “O atual modelo econômico da Alemanha, no qual o fornecimento de combustíveis fósseis baratos e a produção de carros com motores de combustão desempenham um papel central, parece ultrapassado, mas muitos políticos não ousam dizer isso abertamente”, afirmou Kai Arzheimer, cientista político da Universidade de Mainz. “Estou, no mínimo, cético de que haverá um verdadeiro recomeço no futuro próximo.”
Em um e outro país, a extrema-direita afia os dentes
Se o novo governo não conseguir mudar as coisas rapidamente, o partido anti-imigração AfD, apoiado principalmente pelos eleitores do Leste, será o maior beneficiado. Ursula Münch, diretora do grupo de pensadores Academia de Educação Política da Baviera, disse que, com o SPD provavelmente tornando-se parceiro de Merz e criando um governo de meio-termo, esperanças frustradas e desilusão poderão revelar-se uma mistura tóxica. “As expectativas do eleitorado, das corporações e da mídia são muito altas, altas demais”, disse, diante da persistência de problemas estruturais urgentes ao longo de anos, enquanto a Alemanha ficava para trás. “Isso sobrecarregará qualquer governo.”
Münch acredita, no entanto, que o consenso emergente de que a Alemanha precisa enfrentar de frente suas fraquezas poderia oferecer um mandato convincente para um chanceler direto e com maioria suficiente. “Isso me deixaria bem confiante de que os alemães poderão ser mais otimistas novamente e desenvolver mais confiança na democracia.”
Os atuais problemas políticos da França – o país atravessa seu pior período de volatilidade política desde a Segunda Guerra – decorrem em grande parte da decisão de Macron de dissolver o Parlamento depois que suas forças centristas foram duramente derrotadas pelo partido de extrema-direita Reunião Nacional, de Marine Le Pen, nas eleições europeias da primavera. Nas parlamentares, a Nova Frente Popular, coalizão de partidos de esquerda que vão do tradicional Partido Socialista ao radical França Insubmissa, liderada pelo político Jean-Luc Mélenchon, conquistou o maior número de assentos. A aliança de Macron ficou em segundo lugar e a RN, embora tenha terminado como o maior partido único, ficou em terceiro. O Parlamento foi dividido em três blocos aproximadamente iguais e opostos – esquerda ampla, centro e direita e extrema-direita –, nenhum dos quais, crucialmente, conseguiu algo próximo da maioria parlamentar.
Após semanas de hesitação e recusa em nomear um primeiro-ministro de esquerda, Macron escolheu Michel Barnier, um conservador veterano e principal negociador do Brexit da UE, apoiado por uma frágil aliança minoritária de parlamentares de centro e centro-direita. Neste mês, o partido RN uniu forças com o NFP para derrubar o governo de Barnier em um voto de desconfiança sobre o orçamento de 2025, que incluía cerca de 20 bilhões de euros (127 bilhões de reais) em aumentos de impostos e 40 bilhões de euros (254 bilhões de reais) em cortes de gastos.
À espreita. Le Pen continua a ser o nome mais forte para as presidenciais francesas – Imagem: Geoffroy Van Der Hasselt/AFP
Bayrou, seu substituto, deve tentar reunir uma maioria governante mais sólida, possivelmente envolvendo parte da centro-esquerda, ou ao menos garantir um “pacto de não agressão” que não deixe o novo governo sujeito exatamente à mesma ameaça, um voto de desconfiança apoiado tanto pela esquerda quanto pela extrema-direita. A aritmética parlamentar continua, porém, a mesma. Macron “parece estar se preparando para construir um pacto de governo mais estável com conservadores, socialistas, comunistas e verdes”, que “parecem prontos para fazer concessões e evitar outro governo à mercê da RN”, disse Rym Momtaz, do grupo de estudos Carnegie Europe. “Mas essa é apenas uma solução temporária. Ele ainda não tem uma solução para reverter o aumento da popularidade que Le Pen tem desfrutado desde 2017 e suas chances significativas de ser eleita presidente em 2027.”
Entretanto, não é um bom presságio para os problemas fiscais da França que o gatilho para o colapso do governo cessante tenha sido um orçamento restritivo cujo objetivo central era a restauração parcial das finanças públicas em dificuldades da França. A França parece, ao menos, ter “aprendido a lição” de que precisa de “um aperto fiscal lento e verossímil”, disse o economista John Springford, do Centro para Reforma Europeia. A Alemanha, que necessita de reformas tributárias e de mercado de trabalho e investimento público para aumentar os gastos, ainda precisa dar esse passo, disse ele.
De uma perspectiva da UE, alguns analistas estão cautelosamente otimistas. “É uma visão prematura de que a França e a Alemanha estão em baixa e fora”, disse Mujtaba Rahman, da consultoria Eurasia Group. “No segundo semestre do ano que vem, deveremos ver uma locomotiva franco-alemã revigorada.” Antecipar as eleições na Alemanha para fevereiro foi “muito positivo”, prossegue Rahman. “Teremos clareza no início do ano, uma coalizão mais coerente e um chanceler mais cético em relação à Rússia. E Merz e Macron estarão muito mais alinhados nas grandes questões do que Macron e Scholz.”
Os problemas domésticos de Macron não desaparecerão da noite para o dia, “mas parece haver um senso de responsabilidade nacional para formar um governo, aprovar um orçamento e fornecer a estabilidade mínima de que a França precisa, e que a Europa precisa ver na França”, acrescenta.
Mais importante, Trump 2.0 “deu peso e credibilidade a tudo o que Macron tem dito sobre segurança, defesa e autonomia estratégica”, disse Rahman. A dupla Paris-Berlim “será revigorada e com uma nova e melhorada liderança da UE dará à Europa sua melhor chance de mitigar o pior do que pode estar por vir”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Máquina enferrujada’
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