Mundo
Mãos ao alto
Trump assalta com taxas uma Europa incapaz de escapar da relação abusiva


A União Europeia aceitou a taxação média de 15% sobre as exportações para os Estados Unidos e a retirada de toda alíquota de importação de carros e itens agrícolas do outro lado. O dia do anúncio, 27 de julho, foi apelidado pelo ex-primeiro-ministro da França Dominique de Villepin de o “Dia de Declaração da Dependência Europeia”. De modo mais grosseiro, o chargista Plantu, que por 50 anos desenhou todos os dias na capa do Le Monde, retratou nas redes o presidente norte-americano, Donald Trump, em coito anal com Marianne, a figura feminina que representa a República Francesa. De modo mais fino ou mais grosso, a conclusão é a mesma: a economia europeia foi violentada e a dependência dos EUA foi reafirmada em novos termos, ainda mais aviltantes.
A consequência, no curto prazo, são as perdas econômicas para um continente que patina com baixo crescimento, envelhecimento e pouca inovação. No plano mais longo, o problema é a incapacidade de romper com uma ordem estabelecida 70 anos atrás, no fim da Segunda Guerra Mundial, segundo a qual a Europa não dá um passo sozinha, sem o condão de um aliado transatlântico que, sob a atual administração da Casa Branca, se mostra cada vez mais abusivo. “É inútil acreditar que Donald Trump vá parar por aí com suas reivindicações diante de uma Europa que despreza a própria soberania”, disse Villepin, acrescentando que, da mesma forma, é bobagem imaginar que “um futuro presidente norte-americano, ainda que mais razoável, vá reverter os termos desse acordo sem nenhuma nova contrapartida suplementar”. Ou seja, as perdas foram contratadas pela Europa no curto e no longo prazo. A desonra também.
A explicação para o continente ter aceitado um negócio tão desvantajoso é simples: todos esperavam algo pior. A tática de Trump contra os europeus – e não só – foi a de radicalizar a tal ponto suas ameaças iniciais que, no fim, mesmo um péssimo acordo não pareceu tão ruim. Em abril, o presidente dos EUA tinha ameaçado impor 20% de alíquota para a União Europeia. O continente, em princípio, disse topar uma guerra aduaneira, o que levou Washington a retrucar com taxação de 50%, mais uma alíquota espelhada, que subiria a cada novo lance europeu, numa escalada sem fim. Se foi blefe ou fato, nunca se saberá. Mas, diante dos 15% acertados, alguns líderes europeus consideram que saiu barato.
O acordo foi fechado bem ao estilo Trump: numa visita ao campo de golfe que o magnata possui na Escócia. A falta de liturgia simbolizou a maneira arrogante com a qual o republicano lida com os parceiros. Maros Sefcovic, comissário da União Europeia para o Comércio, despencou de Bruxelas para Aberdeen. Depois do encontro, o eslovaco disse sobre a reunião: “Se você tivesse estado naquela sala ontem, você teria visto que a conversa começou em 30%”. O argumento ilustra bem o espírito de dar os anéis para não perder os dedos numa União Europeia amedrontada.
O acordo precisa ser ratificado em cada um dos Parlamentos dos 27 integrantes do bloco
“É um dia sombrio”, definiu o atual primeiro-ministro da França, François Bayrou. “Não estou satisfeito”, declarou o chanceler alemão, Friedrich Merz. O coro choroso das duas principais economias do bloco não deve comover, no entanto, um tipo de eleitor que a cada ano, em todo o continente, manifesta desgosto com a União Europeia votando em candidatos de extrema-direita. A percepção de que a burocracia do bloco, em Bruxelas, trabalha contra os interesses dos cidadãos deve crescer à medida que a economia sinta os reflexos dessa mudança de patamar, mesmo que esse setor político não tenha nada a oferecer, além da subserviência e da adulação a Trump.
Além de emplacar 15% de imposto sobre os europeus e de baixar a zero a alíquota sobre seus próprios produtos, os EUA conseguiram amarrar os parceiros num compromisso de aquisição de 750 bilhões de dólares em energia ao longo dos próximos três anos, valor adicional às compras ordinárias em curso no setor. A transação energética só se tornou possível porque a guerra na Ucrânia, financiada em grande medida pelos norte-americanos, privou a Europa da compra de gás da Rússia.
No quesito bélico, aliás, Trump lucrou duplamente. Primeiro, ao fazer a Europa aumentar o próprio gasto com defesa, o que implica, em grande medida, compra de material militar dos EUA, e, em seguida, ao vender um tipo de energia que nem sequer se encaixa nos planos e promessas de transição verde no Velho Continente. Em relação ao comércio de armas, o republicano havia anunciado, em 14 de julho, a venda de baterias de mísseis Patriot, de defesa antiaérea, a países europeus. A transação vai servir para repor parte de um arsenal repassado à Ucrânia.
No campo energético, a comercialização norte-americana será sobretudo de combustíveis fósseis: petróleo bruto e gás natural liquefeito, além de energia nuclear. A quantidade anual encomendada corresponde, no entanto, ao triplo do consumo atual europeu, negociação definida por especialistas do setor, entre eles Laura Page, da consultoria KPRL, em entrevista ao site Politico, como “inacreditável e completamente irrealista”, o que sugere que o montante só foi aceito por imposição de Trump, não por um cálculo responsável sobre as carências energéticas do continente.
No último ano, os 27 integrantes da União Europeia importaram, juntos, 433 bilhões de dólares em energia, dos quais só 87 bilhões eram dos EUA. Agora, com o novo acordo, o valor será quase triplicado para alcançar os 250 bilhões de dólares anuais previstos. Ou seja, a venda, se de fato realizada, é tão espetacular que excederá em quase 60 bilhões tudo o que os EUA exportam por ano de petróleo e gás. Consultorias como a KPRL têm dúvida, inclusive, sobre se os norte-americanos conseguirão suprir a demanda.
Como tudo que envolve Trump, esse também foi um acordo superlativo, imposto de forma hostil e com base em cálculos e afirmações frequentemente conflitantes com a realidade. Politicamente, é, porém, mais um ganho com o qual ele pode acenar enquanto avança na direção das outras presas políticas e aduaneiras, o Brasil incluído.
Para entrar em vigor, o acordo precisa ser aprovado pelos Parlamentos de cada um dos 27 países integrantes do bloco, em separado. É possível, portanto, que os europeus tenham apenas coreografado o acerto coletivamente para, em seguida, cozinhar o texto em banho-maria no nível nacional, dissipando a culpa por não fazer ele avançar de fato. •
Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mãos ao alto’
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