Mundo
Malandro ou mané?
Primeiro deputado de origem brasileira no Congresso, George Santos dá dor de cabeça aos republicanos


Perseguido por repórteres nos corredores do Congresso dos Estados Unidos, nas ruas da capital, Washington, ou a cada vez que entra e sai do elevador, George Santos não tem paz. Deputado eleito pelo estado de Nova York pelo Partido Republicano em dezembro do ano passado, o primeiro brasileiro a conquistar um assento no Parlamento norte-americano tem sido conjurado pelos democratas e rejeitado até mesmo por seus pares.
George Anthony Devolder Santos mentiu sobre sua origem, sua caridade animal, sua educação e suas finanças. Como tem o hábito de se apresentar ora como George Santos, ora como Anthony Devolder e, num passado não muito distante, como Kitara Ravache, há quem duvide até que o nome do congressista seja verdadeiro. Alinhado à agenda da extrema-direita, adota com fervor as mesmas táticas aplicadas pela ala trumpista do partido – pró-armas, declara-se judeu, mas católico praticante perseguido pela comunidade LGBTQ nova-iorquina.
Logo que as primeiras mentiras foram reveladas pelo The New York Times na semana seguinte da vitória confirmada, o porta-voz do Comitê de Campanha do Congresso Democrata, Nebeyatt Betre, afirmou, em comunicado oficial, que Santos era “um mentiroso em série” e que “seu engano consistente e as mentiras descaradas nos mostram exatamente o tipo de fracasso que ele será no Congresso”. Mas a notícia de que um processo por suspeita de crime de estelionato cometido em 2008 seria reaberto a pedido do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro deixou claro que o buraco era bem mais embaixo. O brasileiro virou um problemão para os republicanos.
Não se tratava mais de um parlamentar que fantasiou o currículo para alavancar a candidatura, mas de uma vida criminosa repleta de trapaças e que agora esbarram nas contas da sua campanha eleitoral. Enquanto mais de dez dos principais doadores de Santos não tiveram as identidades confirmadas, o jornal The Times conseguiu identificar que a campanha do republicano gastou milhares de dólares em aluguéis e uma série inacreditável de pagamentos de exatos 199,99 dólares, precisamente um centavo abaixo do limite em que as regras da Comissão Eleitoral Federal, a FEC, exigem que os candidatos forneçam recibos.
Em 9 de janeiro, Santos foi denunciado pela Central de Campanhas Jurídicas sob acusação de usar fundos de campanha eleitoral para despesas pessoais e de conduzir um esquema de doações para ocultar a origem de 705 mil dólares. Ele é investigado por agências locais, estaduais e federais de aplicação da lei. Na quinta-feira 26, a FEC enviou uma carta à campanha do parlamentar afirmando que podem existir falhas “em incluir as informações verdadeiras, corretas ou completas do tesoureiro”. O texto diz ainda que a campanha está sob risco de enfrentar acusações criminais, se for descoberta intencionalidade de qualquer “declaração ou representação materialmente falsa, fictícia ou fraudulenta”.
Mentiroso compulsivo, investigado por estelionato e fraude eleitoral, o parlamentar está na corda bamba
O deputado, mais que depressa, disse a repórteres em Washington que não tem nada a ver com os registros de financiamento da própria campanha. “Eu não toco em nenhuma das minhas coisas da FEC, então não seja hipócrita. Toda campanha contrata fiduciários.” A situação do parlamentar ficou, no entanto, ainda mais delicada quando se tornou público, na terça-feira 31, que o braço direito do congressista, sua tesoureira Nancy Marks, havia renunciado ao posto dias antes e deixado o ex-chefe a nadar com os tubarões. Muito do que foi supervisionado por ela está no centro de várias reclamações apresentadas à FEC e até o fechamento desta edição nenhum substituto havia sido contratado.
Após as lambanças expostas, em especial a financeira, a pressão por um posicionamento enérgico do presidente da Câmara, Kevin McCarthy, tem sido cada vez maior. Em entrevista coletiva, o presidente do Partido Republicano no Condado de Nassau, Joseph Cairo, foi categórico: “George Santos não é bem-vindo na sede republicana”. “Suas mentiras não eram meras mentiras. Ele desgraçou a Câmara dos Deputados.” Ainda assim, o brasileiro garante que não deixará o cargo, mas decidiu, na terça-feira 31, afastar-se temporariamente dos dois modestos comitês para os quais havia sido designado: o de Pequenas Empresas e o de Ciência, Espaço e Tecnologia.
Em coletiva à imprensa, McCarthy disse acreditar no Estado de Direito e que uma pessoa é inocente até que se prove o contrário. “Ele tem a responsabilidade de trabalhar e ter sua voz aqui, mas a qualquer momento, se chegar ao nível legal, nós cuidaremos disso. Se, de alguma forma, quando passarmos pela ética, ele infringir a lei, então o removeremos”, garantiu. Anteriormente, McCarthy disse que “sempre teve algumas dúvidas sobre” a veracidade do currículo de Santos, mas o comparou ao presidente da República. “E se eu fosse manter o padrão se alguém mentisse, Joe Biden não poderia ser presidente agora. Ele nos disse que tinha três diplomas, ele se formou em primeiro lugar em sua classe, várias vezes antes. Portanto, não vamos ser sensacionalistas.”
Por trás da condescendência de McCarthy está a custosa vitória para conseguir o comando da Casa. O republicano só conquistou o posto após 15 rodadas, no que se tornou a disputa mais longa no Congresso norte-americano em 164 anos. Após concessões ainda nebulosas feitas à ala mais radical do partido para conquistar os votos que faltavam, ele conseguiu garantir apenas uma maioria de cinco cadeiras na Câmara, entre elas a de Santos.
A saída do brasileiro poderia, portanto, colocar o presidente da Câmara em apuros. Ao contrário do que acontece no Brasil, se Santos perder o mandato, seja por renúncia ou impeachment, não há suplente. Neste caso, caberia à governadora de Nova York, a democrata Kathy Hochul, realizar uma eleição especial para seu substituto. Como o terceiro distrito congressional, o mesmo que elegeu Santos, é competitivo, uma vitória republicana não é nada garantida. “Sabe por que estou ao lado dele? Porque seus eleitores votaram nele. Vou mantê-lo no mesmo padrão que considero qualquer outro eleito para o Congresso”, assegurou McCarthy. E é neste cenário que Santos se encontra. Na corda bamba. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Malandro ou mané? “
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