Mundo

assine e leia

Luta nas trevas

A restrição à educação de mulheres no Afeganistão divide opiniões no próprio Taleban

Luta nas trevas
Luta nas trevas
No reino do Taleban, elas existem para servir - Imagem: Fricker/Unicef/ONU
Apoie Siga-nos no

A mulher do oficial taleban pediu desculpas por estar sem tempo. Ela precisava preparar suas filhas adolescentes para voar para Doha, capital do Catar, onde em breve começariam um novo período de estudos, explicou à anfitriã no início deste ano. Em Cabul, e em grande parte do Afeganistão, as meninas não podem legalmente frequentar o ensino médio há quase um ano, por causa da proibição do governo. As autoridades insistem que a decisão é apenas temporária, mas não estabeleceram condições ou cronograma para suspendê-la.

A proibição desencadeou uma onda de depressão e raiva no Afeganistão e repulsa generalizada além de suas fronteiras. Também causou divisões menos claras dentro do movimento, refletindo fraturas mais profundas entre ex-insurgentes que têm dificuldade para se adaptar à governança. É um segredo aberto que várias figuras importantes da liderança educaram suas próprias filhas enquanto viveram fora do Afeganistão, principalmente no Paquistão ou no Catar, durante sua luta de 20 anos contra as forças dos Estados Unidos e seus aliados afegãos.

Alguns continuaram a fazer isso secretamente, mesmo depois de voltarem para Cabul, incluída a família cujos planos de educação internacional foram compartilhados com The Observer.

Integrantes de escalões menos altos do movimento têm procurado opções mais perto de casa. Uma escola secreta para meninas na capital matriculou as filhas de quatro ou cinco famílias do ­Taleban para aulas da 7ª à 12ª série, disse um funcionário graduado. Uma autoridade veio pedir pessoalmente um desconto maior que o normal, e os professores lhe falaram sobre as outras opções, disse ele. “Fiquei assustado e também feliz que ele e os demais estejam um pouco mais próximos das crianças da escola agora, e estarão nos defendendo e apoiando.”

No compromisso privado de alguns integrantes do Taleban de garantir educação para suas próprias filhas a qualquer custo, outros afegãos veem hipocrisia e certa esperança de mudança. É provável que seja, no entanto, uma longa luta, pois a oposição à educação das mulheres vem do topo do movimento.

Vários afegãos com conhecimento da liderança taleban, tanto dentro como fora do movimento, descreveram a decisão de proibir a frequência de meninas à escola como vinda diretamente do líder supremo, Haibatullah Akhundzada, e seu círculo íntimo. Ele, ou seus aliados próximos, ordenou um dos momentos mais cruéis no ano passado, disseram eles, quando meninas do ensino médio que foram convocadas em março para reiniciar as aulas foram mandadas de volta para casa, logo após aparecerem para o primeiro dia de aulas. “Esta é a postura de uma minoria, que está em uma posição muito forte”, disse uma fonte afegã bem relacionada.

Muitos líderes educam as filhas fora do país ou em escolas clandestinas

Diplomatas e afegãos com laços de liderança disseram que o Ministério da Educação de fato planejava levar as meninas de volta às escolas, com preparativos que incluem verificações de que as instalações atendam aos padrões de classes segregadas. O ministério foi pego de surpresa pela decisão de última hora de Kandahar, onde Haibatullah está sediado. “Duas eminentes figuras do movimento disseram que ‘o Taleban foi feito refém’”, disse a fonte afegã ligada à liderança. Ele descreveu uma reunião de milhares de clérigos, organizada no mês passado, como uma tentativa de outras facções frustradas de manobrar a liderança e reivindicar legitimidade para a educação das meninas. Esse plano foi frustrado quando Haibatullah veio a Cabul pela primeira vez, para discursar na reunião, ocasião em que evitou a questão da educação feminina.

Apesar dos tabus sobre criticar a liderança, depois de décadas a enfatizar a unidade no campo de batalha, um punhado de figuras importantes do ­Taleban manifestou-se contra a proibição. Em maio, o vice-ministro das Relações ­Exteriores, Sher Mohammad Abbas Stanikzai, atacou diretamente a proibição da educação de meninas em um discurso pela televisão que defendeu os direitos de “metade da população do Afeganistão”. O clérigo taleban Rahimullah Haqqani, morto recentemente por um homem-bomba do Estado Islâmico, havia dito anteriormente à BBC que mulheres e meninas afegãs deveriam ter acesso à educação: “Não há justificativa na Sharia (lei islâmica) que diga que a educação feminina não é permitida. Nenhuma justificativa. Todos os livros religiosos afirmam que a educação feminina é permitida e obrigatória, porque, por exemplo, se uma mulher fica doente, em um ambiente islâmico como o Afeganistão ou o Paquistão, e precisa de tratamento, é muito melhor que seja tratada por uma médica”.

Em junho, o governo central lançou uma resposta sangrenta a um levante de um comandante rebelde do T­aleban no distrito de Balkhab, na província de Sar-e Pol, no norte. O conflito teve raízes complexas, mas fontes disseram a The Observer que, antes de o líder ­Mawlawi Mehdi perder seu cargo no governo, ele também defendia a educação das meninas. Como a proibição, oficialmente, é apenas temporária, e o Taleban sempre disse que apoia o princípio do direito das mulheres à educação, algumas autoridades com filhas mais novas estão dispostas a revelar sua própria atitude em relação à escolaridade.

Maulawi Ahmed Taqi, porta-voz do Ministério do Ensino Superior, destacou os esforços para adaptar as universidades para que as mulheres possam estudar, enquanto atendem aos requisitos do Taleban de estrita segregação de gêneros, como um sinal do compromisso do grupo com a educação das mulheres. “Tenho filhas e, claro, quero que elas sejam educadas em madrassas religiosas, além de terem uma educação moderna”, disse. Elas estão atualmente na escola primária, mas ele está confiante de que poderão continuar os estudos à medida que cresçam, acrescentou. “Estou otimista de que as escolas não serão fechadas para sempre.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Luta nas trevas”

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo