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Lunáticos ou perigosos?

A eficácia golpista da célula de extrema-direita desbaratada pela polícia vira alvo de debate na Alemanha

Lunáticos ou perigosos?
Lunáticos ou perigosos?
Comando “militar”. Eder, de longa carreira no exército alemão, foi preso na cidade italiana de Perugia. Outros 25 conspiradores acabaram detidos - Imagem: Boris Roessler/DPA/AFP e iStockphoto
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O tempo de perdoar e esquecer havia passado, disse o homem de barba grisalha em um forte rosnado bávaro, de costas para o Mar Adriático de cor turquesa, enquanto gesticulava calmamente em direção à câmera. “As pessoas que nos intimidaram, que nos prenderam”, disse, estavam prestes a enfrentar o acerto de contas, numa “revolta histórica” que daria lugar a uma nova ordem jurídica e política. A mudança era iminente, questão de semanas. “Se tudo correr como planejado, faremos isso antes do Natal”, prometeu o homem, que se autodenomina “General Eder”, em um vídeo publicado num site frequentado por teóricos da conspiração de extrema-direita, no Domingo do Advento deste ano (27/11).

Dez dias depois, na madrugada de quarta-feira 7, Maximilian Eder, 64 anos, foi preso na cidade italiana de ­Perugia, na maior série de incursões da Alemanha contra o extremismo de direita. Juntamente com outros 25 conspiradores, Eder é acusado de traçar um plano para derrubar o Estado por meios violentos, instalar um governo paralelo liderado por um pequeno aristocrata alemão e pedir à Rússia para renegociar os tratados pós-Segunda Guerra Mundial.

Embora nenhum dos golpistas fosse uma figura pública conhecida, sua origem social causava espanto: eles ­incluí­am médicos de família, juízes, ­chefs de cozinha e cantores de ópera, e vários do bando desorganizado de aspirantes a revolucionários pareciam ter sido radicalizados no rico e respeitável centro da sociedade. Um funcionário da polícia criminal da Baixa Saxônia também é investigado por conexões com o grupo, informou a emissora ZDF. Seu círculo era completado por homens de formação militar, como Eder: verdadeiro comandante de um dos batalhões de infantaria blindada da Bundeswehr entre 1998 e 2000, que passou algum tempo de serviço no ­Kosovo e no Afeganistão e foi fundador do comando de forças especiais da Alemanha (KSK). Um ex-comandante do Batalhão 251 de paraquedistas foi apontado como aspirante a líder do “braço militar” do grupo terrorista. Mas a inclusão de uma ex-deputada do Bundestag do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) fez soar o alarme mais estridente: como ex-deputada, Birgit ­Malsack-Winkemann teria conhecimento dos arranjos de segurança e privilégios especiais de acesso ao conjunto de edifícios parlamentares no centro de Berlim.

Uma lista de alvos potenciais, encontrada na casa de um suspeito durante as batidas policiais, incluía sete integrantes do Parlamento alemão, entre eles a ministra das Relações Exteriores verde, ­Annalena Baerbock, o líder da oposição conservadora, Friedrich Merz, e a colíder e o secretário-geral do Partido Social-Democrata, Saskia Esken e Kevin Kühnert. O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, disse estar “profundamente preocupado” com o suposto complô, descrevendo-o como um “novo nível”.

Sob a liderança do “General Eder”, o grupo pretendia tomar o poder e restaurar a “glória” do Reich

Se o grupo de conspiradores teria realmente representado uma séria ameaça à ordem democrática da Alemanha, ou se era apenas um bando de excêntricos com uma imaginação hiperativa, entretanto, foi objeto de debate nos dias que se seguiram às prisões. O fato de jornais selecionados e equipes de filmagem terem sido informados com antecedência sobre as batidas de madrugada – duas semanas atrás, segundo alegou a deputada do partido A Esquerda Martina Renner – levou a críticas de que a operação foi projetada como um trabalho de publicidade para uma comunidade de inteligência que tem demorado a descobrir planos semelhantes, sem dúvida mais ameaçadores, de grupos de extrema-direita.

O conservador diário suíço Neue ­Zürcher Zeitung, que tem o hábito editorial de arengar seu vizinho do Norte sobre questões políticas, disse que “as agências de segurança alemãs quiseram mostrar seus músculos na frente do mundo inteiro”. O Berliner Zeitung escreveu que as prisões foram vistas como um “golpe de relações públicas bem orquestrado”, concentrando-se em não mais que “25 malucos senis”. O fato de as batidas terem ocorrido um dia antes do “dia de alerta” nacional da Alemanha, destinado a testar sistemas de alerta e sensibilizar para cenários de emergência, deve ser mais que uma coincidência, sugeriram outros. Poucas horas depois das prisões, jornais como Spiegel e Die Zeit publicaram artigos detalhados, nos quais descrevem os antecedentes pitorescos dos conspiradores, que logo foram divulgados em todo o mundo e garantiram o tipo de cobertura internacional que faltava, quando, por exemplo, se descobriu, em 2017, que o ex-soldado Franco Albrecht planejou ataques de “bandeira falsa” contra políticos e figuras públicas importantes, enquanto se fazia passar por refugiado sírio.

Uma questão é se a estratégia da mídia pode ter prejudicado a verdadeira intenção da operação, de apreender provas incriminatórias para levar os conspiradores a julgamento. O jornal berlinense ­Tagesspiegel publicou uma entrevista com a vizinha de Eder em sua cidade natal, Eppenschlag, na Baviera. Segundo ela, o aposentado havia ligado da Croácia alguns dias antes. “Pode ser que a polícia apareça na próxima semana”, teria dito o ex-soldado.

Inside information. Malsack-Winkeman, ex-deputada da AfD, integrava a trama golpista, o que aumentou o alerta dos serviços de inteligência alemães – Imagem: Bundestag e Britta Pedersen/DPA/AFP

O comandante militar aposentado está no radar das agências de inteligência ao menos desde o verão de 2021, quando se juntou às marchas antivacina alemãs de uniforme e prometeu proteger os manifestantes da polícia. Na sequência das inundações catastróficas no oeste da Alemanha, Eder e seus apoiadores também criaram um “comitê de crise” numa escola na devastada Ahrweiler, naquele mês de agosto. A outra questão é se uma repressão aos conspiradores de Eder se justificaria pela ameaça que representavam para a segurança nacional. Sua mensagem de vídeo com trilha sonora de harpa e percussão, compartilhando abertamente seu plano revolucionário com o resto do mundo, pode sugerir menos gênios estratégicos a tramar nas sombras do que velhos presos na câmara de eco da internet.

O recanto do espectro extremista de direita habitado por Eder e seu círculo floresceu, porém, nos últimos anos, precisamente porque não foi levado muito a sério. Os promotores descreveram os suspeitos presos como “apoiadores de mitos da conspiração, de um conglomerado de narrativas relacionadas às ideologias do movimento Reichsbürger e da QAnon”. As crenças do primeiro grupo, os “cidadãos do império”, foram amplamente expostas em um discurso de 2019 num fórum de negócios suíço por Heinrich XIII, príncipe Reuss de Greiz, aristocrata de 71 anos descrito como o líder político do grupo e que se imaginava no poder após o golpe, ao menos temporariamente.

Ao reclamar que sua dinastia havia sido injustamente despojada de seus pertences por meio de guerras provocadas por sinistros maçons e financistas judeus, ­Heinrich XIII afirmou que a Alemanha moderna “apenas se tornou uma estrutura administrativa dos Aliados”, discurso-padrão do movimento Reichsbürger. Ao descartar o tratado internacional que permitiu a reunificação alemã no início dos anos 1990, seus adeptos afirmam que o Reich continua a existir, pois a Alemanha assinou um armistício e não um tratado de paz após a Segunda Guerra Mundial. A república federal é ilegítima, mera “simulação de Estado”. Qual império restaurar o Reichsbürger nem sempre concorda.

“A cena do Reichsbürger é muito dividida internamente, e Heinrich XIII não era uma figura particularmente dominante no movimento em geral”, disse Nicholas Potter, analista que monitora redes de extrema-direita para a Fundação Amadeu Antonio, que faz campanha contra o racismo e o antissemitismo. “Alguns deles querem trazer de volta o Kaiserreich (o Estado imperial alemão entre 1871 e 1918), outros, o Terceiro Reich (a Alemanha de Hitler)”.

O bando, fortemente armado, teria poder para desencadear um ataque terrorista de grandes proporções

Heinrich XIII demonstrou as divisões internas do movimento em uma carta datada de 9 de junho de 2020, posteriormente compartilhada em um canal QAnon alemão no Telegram. Em seu discurso, ele adverte que uma Alemanha liderada por Georg Friedrich, príncipe da Prússia, atual chefe do ramo prussiano da casa de Hohenzollern que governou o império alemão, seria uma “monarquia à mercê dos Aliados”, uma “república federal 2.0”. Heinrich XIII, por outro lado, prometeu buscar a “estrutura correta sob o direito internacional” ao reconstituir um Estado membro do ­Kaiserreich. Ele imaginou o novo império como um Estado enxuto, com “um Parlamento com, no máximo, 201 delegados e cinco ministérios”. A lei eleitoral seria reformada. Na carta, um frustrado Heinrich XIII reclamava que seu plano exigia não apenas o apoio dos três aliados (“EUA, RUS, UK”), mas também de exércitos de patriotas “que, infelizmente, não podem ser facilmente consolidados”.

Essas fantasias pomposas, combinadas com um juridiquês agressivo, costumavam tornar mais fácil descartar a cena do Reichsbürger. Mesmo depois de um policial ser morto a tiros por um dos adeptos do movimento marginal durante uma operação na região da Francônia, em 2016, a BfV, a agência de inteligência interna da Alemanha, recusou-se a tomar medidas de vigilância sistemática. Embora a teoria da conspiração tivesse várias centenas de seguidores, nem todos poderiam ser classificados como extremistas de direita, disse a BfV na época.

Ela só começou a levar o movimento mais a sério no ano da saída de seu presidente, Hans-Georg Maaßen, que desde então espalha nas redes sociais teorias da conspiração sobre a pandemia e o Fórum Econômico Mundial. Naquele ano, a agência contabilizou 19 mil ­Reichsbürgers em toda a Alemanha, número que, desde então, aumentou para 21 mil.

Uma das poucas características unificadoras do movimento, preocupantemente, é a tendência a acumular armas e munições. A polícia alemã encontrou armamentos em 50 das 150 propriedades vasculhadas, incluindo dois rifles, uma pistola, espadas e bestas: arsenal insuficiente para derrubar um país de 83 milhões, mas o bastante para realizar um ataque terrorista direcionado. Ainda não está claro se o grupo escondeu mais armas em outros lugares. Em maio de 2020, descobriu-se que um integrante do comando das forças especiais alemãs retirou armas e munições das reservas do exército e as depositou em um local secreto, aparentemente em preparação para um cenário de “Dia X” de colapso social.

O último relatório da inteligência interna da Alemanha avalia o número potencialmente violento de Reichsbürgers em 2.100 – comparável aos 1.950 indivíduos listados no ano passado no país como tendo potencial para cometer violência terrorista islâmica. Embora os “cidadãos do império” fossem menos organizados do que os partidários do Estado Islâmico, eles também eram mais propensos a ter acesso a armas. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lunáticos ou perigosos? “

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