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Lixão abaixo de zero

Os dejetos acumulados das estações científicas ameaçam a biodiversidade da Antártida

Lixão abaixo de zero
Lixão abaixo de zero
Falta consciência até aos cientistas – Imagem: Arquivo/AFP
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A uma curta caminhada sob o vento cortante de Villa Las Estrellas, um vilarejo chileno na Península Antártica, há uma enseada que a maioria dos cientistas nas estações de pesquisa próximas tenta ignorar. Um punhado de pinguins estremece nas sombras de seis tanques de combustível russos e três silos baixos, enferrujados em redemoinhos de ouro, laranja e marrom e deformados pelo frio e o vento.

Fora de vista e longe da mente, cada um deles está cheio de detritos de décadas de trabalho científico e logístico na Ilha do Rei George, onde seis estações de pesquisa científica operam num raio de 5 quilômetros. Em um deles, dezenas de teclados de computação estão amontoadas num velho freezer, com as teclas arrancadas e misturadas com tampas de garrafas e latas de cerveja descartadas, com rótulos desbotados em russo, alemão e espanhol.

Na ponta da praia há um jogo de pebolim enegrecido pelo fogo, enquanto pilhas de baterias de 12 volts, rachadas pelo frio, vazam uma mancha gordurosa de ácido. O combustível escorre para a praia de seixos de uma fileira de barris enferrujados rotulados como gasolina. Chamado tristemente de “Chernobyl” por alguns que passam por Villa Las Estrellas, o lixão na Ilha do Rei George é um claro lembrete do impacto que os humanos continuam a causar depois de um século de visitas ao continente mais intocado da Terra. “É deprimente”, grita o cientista basco Pedro Echeveste, 41 anos, acima do barulho do vento. “Apesar de todo o bem que os cientistas fazem à Antártida, o impacto que temos é enorme.”

Embora a maioria dos resíduos seja agora embalada e enviada da Antártida em navios, a pegada humana é visível. Em outubro de 1991, foi assinado em Madri um protocolo de proteção ambiental que estabelece padrões mínimos de gestão ambiental e reitera que a Antártida é uma “reserva natural dedicada à paz e à ciência”. Ele entrou em vigor em 1998 e foi assinado por todas as 29 partes consultivas do Sistema do Tratado Antártico (ATS na sigla em inglês) de 1959, que governa o continente, bem como por 13 outras nações.

Entre suas recomendações, o protocolo estipula que os impactos ambientais causados por qualquer nova infraestrutura devem ser monitorados regularmente, embora dois terços das estações de pesquisa tenham sido construídos antes de sua adoção, incluindo qualquer perturbação de habitats. A aplicação é, porém, largamente deixada a cargo de cada programa e missão científica. “A regulamentação é um grande problema”, disse ­Jasmine Lee, pesquisadora do British Antarctic Survey, que estuda a sustentabilidade do envolvimento humano no extremo Sul. “E o cerne disso é geopolítico. Ninguém vai se virar e dizer para você agir, porque pode haver repercussões em outra coisa para a qual uma das partes deseje aprovação.”

Atualmente, 56 países são signatários do ATS, e 42 têm presença física na Antártida. Um estudo de 2019 estimou que dos 12 milhões de quilômetros quadrados de gelo e rocha da Antártida, a pegada combinada dessas bases é de 390 quilômetros quadrados, em grande parte no perímetro do continente. E essa pegada provavelmente aumentará à medida que mais países buscarem presença científica ou geopolítica no extremo Sul. Menos de um em cada seis dos 193 Estados das Nações Unidas faz parte do ATS, com a África e o Oriente Médio particularmente sub-representados.

Villa Las Estrellas, vilarejo chileno na península, é chamado de “Chernobyl”

Alguns efeitos antropogênicos na natureza da Antártida são mais visíveis que outros. Echeveste, acadêmico da Universidade de Antofagasta, no norte do Chile, fez sua terceira viagem à Antártida neste verão. Ao lado de duas colegas, Maritza Fajardo e Karola Soto, passou mais de um mês na Ilha do Rei George a coletar amostras de água. “Quando você vê uma ave carregando uma garrafa plástica, ou um contêiner cheio de tambores de óleo velhos, esses são os impactos mais evidentes, mas há muitos outros incorporados às cadeias alimentares e aos ecossistemas.”

Sua equipe conseguiu detectar resíduos de anticongelante e combustível, bem como componentes de protetores solares e produtos de beleza, na água do mar. Efeitos semelhantes foram observados em outros lugares. No ano passado, pesquisadores da Nova Zelândia encontraram microplásticos em cada uma das 19 amostras de neve coletadas na Ilha de Ross, no oeste da Antártida.

Talvez o exemplo mais alarmante de um legado de desrespeito ao meio ambiente seja a Baía Winter Quarters, no extremo sul da Ilha de Ross, onde a estação norte-americana McMurdo foi instalada em 1955. Até 1981, os habitantes rebocavam o lixo para o gelo marinho no inverno para que caísse na baía, quando o gelo derretesse na primavera. Em 1999, um cientista declarou que a baía tinha uma das maiores concentrações tóxicas de qualquer massa de água na Terra. Uma pesquisa de 2001 contou 15 veículos, 26 contêineres e 603 tambores de combustível em 20 hectares de leito marinho.

Embora uma pequena fração do continente antártico tenha sido afetada, a atividade humana é frenética nas localidades costeiras. “As áreas sem gelo da Antártida representam menos de 1% do continente, mas concentram quase toda a biodiversidade e quase toda a ciência”, disse Lee. A pegada de infraestrutura começou com as primeiras cabanas dos exploradores, em 1899, antes que baleeiros, caçadores de focas e, finalmente, cientistas começassem a visitar o continente – e continua a se expandir.

Enquanto grande parte da infraestrutura em Villa Las Estrellas está envelhecida, a base da Força Aérea chilena, inaugurada em 1969, contribui para práticas sustentáveis com um biofiltro movido a minhocas que decompõe os resíduos orgânicos produzidos pela base. Geradores que queimam 2 mil litros de diesel por dia fornecem, no entanto, energia para Villa, destacando o alarmante custo em carbono da ciência antártica.

A Estação Princesa Elisabete, da Bélgica, inaugurada em fevereiro de 2009, é a única sede antártica com emissão zero, gerando eletricidade a partir de nove turbinas eólicas e 284 painéis solares. As reformas em andamento na Base Scott, da Nova Zelândia, incluem um parque eólico de substituição e, em 2018, o BAS anunciou sua meta de reduzir as emissões de carbono em suas estações na Antártida e escritórios em Cambridge para zero líquido até 2040.

Mas o fardo no continente só aumenta, com mais de 100 mil turistas somente nesta temporada de verão, um recorde. “Hoje, você precisa ser um cientista ou alguém muito rico para ir à Antártida, e isso não é justo nem sustentável”, disse Echeveste. “Precisamos pensar em quem vai, porque os impactos só vão ficar mais sérios.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

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