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Escolhido como vice de Kamala, o governador Tim Walz sabe como falar para os eleitores da “América profunda”


Kamala Harris escolheu um dos nomes mais progressistas do Partido Democrata para ser seu vice na corrida presidencial dos EUA. O governador de Minnesota, Tim Walz, traz ares que há muito tempo não circulavam na campanha. Ele concorreu com indicações consideradas mais potentes e conservadoras, a exemplo dos governadores da Pensilvânia, Josh Shapiro, e do Kentucky, Andy Beshea. Desbancou todos eles embalado pelo carisma e pelo senso patriótico, temas caros aos norte-americanos.
Diante de uma multidão barulhenta na Filadélfia, Harris e Walz fizeram sua primeira aparição juntos na noite de terça-feira 7. Foram implacáveis nos ataques ao rival republicano. “Donald Trump vê o mundo um pouco diferente de nós. Primeiro, ele não sabe nada sobre serviço. Não tem tempo para isso porque está muito ocupado servindo a si mesmo”, disse Walz, sob o olhar de aprovação da presidencial democrata.
Nascido em uma comunidade profundamente rural em Nebraska, o governador foi sargento na Guarda Nacional do Exército por mais de duas décadas. Durante um intercâmbio na faculdade, aprendeu a falar um pouco de mandarim. Morou por um ano na China. Mudou-se para a zona rural de Minnesota e lecionou Sociologia e Geografia em escolas públicas de ensino médio. Quando foi treinador de futebol americano, participou da primeira aliança gay-hétero na década de 1990. Passou a ser incentivado pelos próprios alunos a seguir carreira política. Assim como entre seus estudantes, foi popular no Congresso com pautas que defendiam veteranos, sindicalistas e reajustes do salário mínimo, além de ter votado contra a restrição do financiamento federal ao aborto. Fazendeiro e amante dos animais, sabe como poucos dentro do seu partido se comunicar com os eleitores das áreas rurais, com desenvoltura e senso de pertencimento.
Em maio, CartaCapital conversou com especialistas sobre o peso da chamada “América profunda” nas eleições norte-americanas. Autor do livro The Rural Voter: The Politics of Place and the Disuniting of America, lançado em 2023, o cientista político Nicholas Jacobs avaliou que o Partido Democrata havia preterido os eleitores rurais, um grave equívoco. Agora, após a escolha por Walz, Kamala Harris mostra o quanto o Centro-Oeste do país ainda está em jogo e expõe as preocupações sobre a capacidade de vencer em lugares onde eleitores brancos sem educação universitária não podem ser substituídos por mais mães suburbanas, observa Jacobs.
Ao optar pelo governador de Minnesota, acrescenta o cientista político, Harris não apenas admite que apelar para os eleitores rurais não apenas é essencial para os democratas, se eles desejam vencer em estados cruciais onde cada voto conta, mas também reconhece que tal alcance é bom para o país. “O que é surpreendente é que a decisão de Harris reverte a tendência de longa data na política do Partido Democrata, que abandonou a diversidade geográfica pela diversidade demográfica e alinhamento ideológico”, diz Jacobs. “No entanto, mais importante do que quase todas as questões, os eleitores têm implorado por unidade e Walz empurra os democratas para um pouco mais perto desse objetivo ilusório.”
Recentemente, o democrata viralizou nas redes ao chamar Trump e J.D. Vance de “estranhos”
Não é à toa. Governador desde 2018, ele tem entre seus feitos a oferta de café da manhã e almoço escolar gratuitos para crianças de Minnesota. Rebatizou um trecho da Highway 5 como “Prince Rogers Nelson Memorial Highway”, em homenagem ao ídolo pop que viveu no estado. Walz fez questão de assinar o projeto com tinta roxa, pois sabe que detalhes como esse também ajudam na aprovação de 56% do seu mandato, uma das mais altas do país, segundo uma pesquisa de julho da KSTP-TV.
André Pagliarini, professor de História e Estudos Internacionais na Louisiana State University, acredita que Kamala passou no seu primeiro teste com a ala progressista do Partido Democrata. “Walz é uma figura ideal em termos da política identitária, mas também é muito bom nas pautas caras à esquerda. Ele sinaliza que Kamala estará aberta à base progressista, em vez de se sentir na obrigação de publicamente se afastar.”
Casado, Walz e sua esposa tiveram dois filhos por fertilização in vitro. Recentemente, tornou-se queridinho nas redes sociais depois de alcunhar o termo “muito estranhos” ao se referir ao candidato republicano Donald Trump e seu vice J.D. Vance. “Você sabe que há algo errado com as pessoas quando elas falam sobre liberdade”, disse, em entrevista à rede de tevê MSNBC. “Liberdade de estar no seu quarto. Liberdade de estar na sua sala de exames. Liberdade de dizer aos seus filhos o que eles podem ler. Essas coisas são estranhas. Eles parecem muito estranhos.”
O termo alastrou-se como pólvora e, em menos de uma semana, houve um aumento de 28% nas buscas pela palavra “estranho” no Google. Os mais importantes nomes do Partido Democrata, incluindo Kamala Harris, passaram a utilizar a alcunha, o que deixou o ex-presidente furioso, a ponto de comentar o assunto. Em uma entrevista no The Clay Travis and Buck Sexton Show, Trump disse que ninguém o havia chamado de estranho antes. “Sou muitas coisas, mas esquisito não sou. E Vance também não é nada estranho.” Aparentemente, os eleitores razoáveis acharam um tanto estranho quando Trump escolheu por uma versão “mini-eu” ao escolher o seu vice. Numa pesquisa realizada pela CNN, J.D. Vance aparece como o candidato a vice-presidente menos querido desde 1980.
Os motivos não são poucos. O festival de bolas fora de Vance vão desde comentários apoiando uma proibição nacional do aborto ao ataque a mulheres sem filhos, o que espantou até a atriz Jennifer Aniston. “Sr. Vance, rezo para que sua filha tenha a sorte de ter filhos um dia”, escreveu no Instagram. A enxurrada de reações negativas tem levado muitos a especular se o ex-presidente estaria cogitando rejeitar o companheiro de chapa, arriscada estratégia que não é adotada há mais de 50 anos.
A fase ruim, no entanto, não é apenas a de Vance. Em desastrosa e controversa coletiva de imprensa concedida apenas a jornalistas negros, Trump tentou minimizar a importância do vice na chapa. “Você pode ter um vice-presidente que é excelente em todos os sentidos, mas você está votando no presidente. Você está votando em mim.” Caberá ao eleitor norte-americano decidir qual tipo de presidente e vice ele vai escolher para comandar o país. Os currículos dos candidatos estão sobre a mesa. •
Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Língua afiada’
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