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Licença para matar

Benjamin Netanyahu glorifica os “assassinatos seletivos” de inimigos, prática condenada no direito internacional

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Celebração. Bibi se vangloria das mortes de opositores. As execuções extrajudiciais viraram política de Estado, não só em Israel ou nos Estados Unidos – Imagem: Gabinete do Primeiro Ministro/Israel
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A deterioração de um governo começa quase sempre pela decadência de seus princípios.” A frase atribuí­da a Montesquieu soa hoje como alerta para o colapso moral de uma civilização que se crê guardiã da ética e do direito. A autoproclamada superioridade moral do Ocidente, fundada em valores como dignidade da vida e igualdade de todos, encontra-se em rápido declínio. Enquanto prega os direitos humanos e a supremacia da lei, multiplica exceções sempre que seus interesses estão em jogo. O uso sistemático de execuções extrajudiciais, eufemisticamente chamadas de “assassinatos seletivos”, tornou-se o símbolo mais eloquente do esvaziamento de princípios universais e o abismo moral que antecede a queda das civilizações que se julgam eternas.

O declínio ético ficou evidente no discurso de Benjamin Netanyahu na Assembleia-Geral da ONU. Longe de negar ou relativizar, o premier israelense vangloriou-se dos assassinatos seletivos promovidos por seu governo, exibindo-os como vitórias estratégicas e símbolos de honra nacional. Com o uso de imagens dos ataques, transformou execuções em espetáculo diplomático. A mensagem foi clara: ­Israel não apenas elimina os inimigos, mas transforma esses atos em instrumentos de intimidação. Essa postura afronta as normas internacionais e celebra a execução extrajudicial como política de Estado.

O assassinato seletivo, execução deliberada de inimigos fora de campos de batalha, tornou-se um dos instrumentos mais polêmicos da política internacional. A morte de Osama bin Laden no Paquistão e a política israelense de eliminar líderes palestinos e cientistas iranianos são emblemáticas. Seus defensores a veem como ferramenta “cirúrgica”, capaz de eliminar alvos de alto valor e evitar atentados. Já seus críticos veem nessa prática uma ruptura do princípio fundamental de todo acusado ter direito a um julgamento justo.

Eticamente, a tática é controversa. Para alguns, salva vidas ao impedir ataques, para outros, é uma forma de execução sumária na qual o Estado atua como acusador, juiz e carrasco. A morte colateral de civis, comum nessas operações, amplia o sentimento de injustiça. E a eliminação de líderes raramente encerra a violência. Ao contrário, estimula retaliações e perpetua ciclos de vingança. Ao normalizar o “direito de matar preventivamente”, essas práticas corroem os limites morais do uso da força. A antiga ética do guerreiro, fundada no confronto direto e no risco compartilhado, deixa de existir. O guerreiro via honra no inimigo, o caçador, ao contrário, o elimina a distância. Essa “ética do caçador” baseia-se na morte furtiva e sem rosto. O inimigo vira alvo, e matar torna-se operação técnica. A transição da luta aberta à caça seletiva marca a transição de uma guerra entre combatentes para a gestão impessoal da morte, onde o controle remoto substitui o risco e a coragem dá lugar à furtividade. À luz do direito internacional, o quadro é ambíguo. O direito da guerra permite a eliminação de combatentes em conflitos reconhecidos, o que poderia justificar ações contra grupos como a ­Al-Qaeda após 2001. Fora desses contextos, tais operações são, no entanto, execuções extrajudiciais que violam o direito à vida.

A Carta da ONU só permite o uso da força em autodefesa imediata ou com autorização do Conselho de Segurança. Operações em países terceiros sem consentimento, como a morte de Bin­ ­Laden no Paquistão ou do general iraniano ­Qassem Soleimani no Iraque, configuram violação direta da soberania nacional.

O assassinato seletivo mantém-se numa zona cinzenta, explorada por potências que moldam as regras a seu favor. As ordens de Donald Trump para bombardear­ barcos pesqueiros no Caribe e no Pacífico, sob o pretexto de combater o tráfico, reacendem o debate sobre o uso arbitrário da força fora de guerra. Mesmo diante de suspeitas, o direito internacional veda ações letais sem ameaça comprovada. A Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, de 1982, exige proporcionalidade e prevê direito de visita e apreensão, não de destruição. Ao atacar embarcações civis em alto-mar, Trump ultrapassou esses limites, transformando uma operação policial em ato de guerra não declarado.

A exceção virou regra e desafia os limites da legalidade

Internamente, a medida carece de base legal. O War Powers Act, de 1973, obriga o presidente a notificar o Congresso em 48 horas e obter autorização para ações prolongadas. Ao ignorar essa exigência, Trump excedeu seus limites constitucionais e transformou a “guerra às drogas” em zona de exceção, onde a soberania alheia e o devido processo legal são sacrificados em nome da segurança nacional.

Embora EUA e Israel sejam os casos mais notórios, outros países seguem a mesma lógica. A Rússia de Putin foi acusada de usar venenos contra opositores e desertores, sendo os casos de Litvinenko, Skripal e Navalny os mais notórios, como mensagens de intimidação. Nesses ataques, a arma química é também simbólica: aviso de que nenhum inimigo do Kremlin está fora de alcance. O Irã segue a mesma prática. Além de eliminar dissidentes no exterior, bombardeia grupos curdos no Iraque e na Síria com drones e mísseis lançados de seu território. A Arábia Saudita protagonizou um dos casos mais brutais, o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi­ no consulado em Istambul, em 2018. A Turquia de Erdoğan usa a “neutralização” para justificar execuções de militantes curdos em países vizinhos. Já o regime sírio de Hafez e Bashar al-Assad perseguiu e eliminou opositores no exílio, sobretudo após a guerra civil de 2011.

O padrão é claro: o assassinato seletivo virou extensão da soberania estatal, mesmo em solo estrangeiro. Sua normalização corrói os pilares do direito internacional pós-1945, e sua legitimação por Washington e Tel-Aviv serve de álibi a regimes autoritários que justificam execuções em nome da segurança nacional. No curto prazo, essas ações criam a ilusão de eficácia. No longo, corroem a ordem internacional e legitimam a violência preventiva. Na prática, transformam o mundo em terreno fértil para a anarquia armada.

O assassinato seletivo é mais que técnica militar, é ato político de afirmação de poder que desafia os limites da ética e da legalidade. Ao tolerá-lo, a comunidade internacional permite que a exceção vire regra, com alto custo para a segurança global e a própria ideia de justiça. Essa prática revela a arrogância das potências que se julgam acima da lei, como se possuíssem um “direito lupino”, eco da fábula esopiana na qual a força se disfarça de justiça para legitimar a predação do mais fraco. •


*Professor titular aposentado da UFPE, pesquisador 1A do CNPq, integrante da Academia Brasileira de Ciências.

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Licença para matar’

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