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Lar, amargo lar

Os habitantes de Kiev tentam retomar a vida, entre bombardeios, racionamento e o futuro incerto

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Lar, amargo lar
Deixa a vida me levar. Com a invasão prestes a completar um ano e sem data para acabar, os moradores da capital ucraniana aproveitam os intervalos entre os bombardeios russos e a falta de energia elétrica - Imagem: Sameer Al-Doumy/AFP e Ronaldo Schemidt/AFP
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No Beatnik Bar de Kiev, na primavera passada, os mixologistas tinham dúvidas a respeito da reabertura do lugar. Suas famílias estavam principalmente sob a ocupação russa no leste da Ucrânia, muitos de seus amigos, na linha de frente. Seria o momento certo para se preocupar em fazer e vender coquetéis sofisticados? Mas eles tinham secado suas contas bancárias enquanto trabalhavam como voluntários, precisavam de dinheiro para viver e para apoiar o esforço de guerra e achavam que o governo poderia usar os impostos. E talvez, numa cidade que havia passado um mês com soldados russos nos portões e agora desenterrava os horrores em lugares como Bucha e Irpin, os cidadãos precisassem de uma boa bebida. Então, em maio, eles abriram novamente, apenas das 15 às 18 horas, mais café do que vida noturna, por causa do toque de recolher. “A atmosfera mudou. Havia o mesmo barman, os mesmos frequentadores, a mesma música de fundo, mas algo diferente. Não havia aplausos, nem exclamações, de alguma forma tudo estava mais reservado, parecia uma terapia de bar”, disse Igor Novoseltsev.

Kiev foi o primeiro alvo de Vladimir Putin na invasão em grande escala. É o coração político da Ucrânia, que o líder da Rússia quer controlar, e símbolo de mais de mil anos de história, da qual ele quer se apropriar. Depois de quase um ano de guerra, também se tornou um símbolo de sofrimento e resiliência.

Nos subúrbios que se tornaram sinônimos de atrocidade – Bucha, Irpin e ­Borodyanka –, os moradores da cidade suportaram o bombardeio impiedoso que transformou lares em escombros em toda a Ucrânia e a brutalidade íntima que os soldados russos trazem quando chegam a pé, para torturar e assassinar. No centro, mísseis mataram civis enquanto destruíam a paisagem urbana. E neste outono e inverno ataques à infraestrutura cortaram energia, aquecimento e água, às vezes durante dias. Ainda assim, depois que a Rússia recuou, em abril, muitos habitantes de Kiev voltaram, movidos pelo orgulho, a exaustão com a vida de refugiado, a dor constante da ­saudade de casa. E todos os meses chegam refugiados do sul e do leste, atraídos, apesar dos ocasionais ataques de mísseis, pela vida que ainda pulsa em uma das grandes cidades da Europa, a esperança de trabalho, conexões com amigos ou parentes que podem oferecer abrigo.

Segundo o prefeito de Kiev, o ex-campeão mundial de boxe Vitali Klitschko, a população da cidade, que caiu para cerca de 1 milhão quando os soldados russos estavam em suas portas, voltou aos níveis pré-guerra, cerca de 3,6 milhões, com base em dados de uso de telefone. Ao menos 300 mil habitantes agora são refugiados internos, disse Klitschko. A Cruz Vermelha acredita que esse número esteja próximo de 500 mil, incluindo dezenas de milhares de crianças. Os ucranianos, em uma única palavra sugestiva, chamam esses recém-chegados simplesmente de ­pereselentsi – “os que se mudaram”.

O número de moradores da capital voltou aos níveis pré-invasão, cerca de 3,6 milhões

Eles ocuparam o lugar de outros ainda no exílio ou na linha de frente, soldados hoje em hospitais ou que foram enterrados por entes queridos. Alguns são de classe média e vieram por opção, encontrando em Kiev uma cidade que compreendeu seu trauma. Depois de escaparem de intensos bombardeios ou da ocupação, eles podem se sentir deslocados no oeste, onde a guerra se intrometeu com menos regularidade ou intensidade, apesar da generosidade de seus concidadãos. “Os moradores de Kharkiv sabem o que é um bombardeio, o que significa perder tudo em sua vida e começar do zero”, disse Valeri Moroz, químico e chefe de P&D de uma empresa antes sediada no leste da cidade. Ele passou os primeiros meses da guerra no oeste e implorou aos chefes que o deixassem se mudar para Kiev. “Lá eles não entendem a nossa experiência e é difícil ter algo em comum.” Moroz acostumou-se a programar o dia em torno de cortes de energia e noites tranquilas, ir à academia quando não há eletricidade ou trabalhar no McDonald’s em vez de em casa. “Não sinto nenhum incômodo. Eu aceito que esta é a nossa vida e devemos seguir em frente: os meninos e meninas na frente sofrem condições de vida muito piores.”

Outros acabaram em Kiev por não terem para onde ir e agora lutam para sobreviver nas ruas geladas. No noroeste da cidade, os refugiados ajudam uns aos outros. Alla Onyshchuk passou meses à sombra da aniquilação nuclear, na cidade de ­Enerhodar, construída em torno da usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa. Professora de matemática, ela só decidiu sair quando ficou claro, no início do outono, que os russos poderiam puni-la por se recusar a adotar o currículo deles. Quer ir para casa logo após o fim da guerra.

Catando comida estão Viktor e Liubov Havryliak, forçados a deixar sua casa perto de Kherson quando ele foi ferido por estilhaços. Um suborno de 400 dólares os levou a áreas controladas pela Ucrânia, e sua filha mora em Kiev, por isso vieram procurar ajuda médica. O apartamento dela fica no 17º andar, e os ferimentos dele mal lhe permitem andar, então ficam presos dentro de casa horas por dia, devido aos apagões. Eles querem falar sobre a dor, porém, para “deixar o mundo saber o que aconteceu conosco”. Ambos com 51 anos, anseiam por uma casa que se tornou muito perigosa para voltar, embora gostem de Kiev quando podem sair. “Parece um país estrangeiro para mim, é lindo”, diz Victor. “Em todo o meu tempo aqui, só vi dois carros soviéticos, os demais são importados.”

Prontidão. O metrô de Kiev ainda serve de abrigo aos civis. Os soldados ucranianos se preparam para enfrentar uma possível nova campanha militar russa – Imagem: Ministério da Defesa da Ucrânia e Aytac Unal/Anadol Agency/AFP

Todo ucraniano se lembra de onde estava na manhã de 24 de fevereiro e o que os acordou. Para muitos em Kiev, foi o som da primeira queda de mísseis russos. Poucos, mesmo entre a elite militar, pensaram que Moscou lançaria uma invasão em grande escala. Parecia imprudente. Quando aconteceu, não precisou de explicação. “Todas as férias minha avó fazia um brinde: ‘Pela paz. Desejo que você nunca experimente a guerra’. Quando criança, eu não entendia, não achava que a guerra pudesse voltar. Desde fevereiro, eu entendo”, disse Serhii Dubrov.Um dos principais médicos de emergência em Kiev, naquela manhã Dubrov se despediu da mulher e filhas, que rumaram para a fronteira enquanto ele se mudava para o hospital, bloqueou as janelas com caixas e esperou pelas primeiras vítimas. Em 24 horas, estava sobrecarregado. Depois de operar uma jovem, Sofia, cuja família havia sido morta num ataque russo, a realidade do que essa invasão faria à Ucrânia o abalou. “Trabalhei mais de 20 anos em hospitais de trauma, mas depois de Sofia fui ao meu consultório, tranquei a porta e tive um colapso.” A intensidade daqueles primeiros dias passou e sua família decidiu voltar quando as escolas abriram no outono. Mas cada vez que há um ataque, o hospital é um dos primeiros recursos das vítimas. “É difícil saber como isso vai mudar nossas vidas, mas acho que as pessoas só podem sair diferentes de como elas eram antes.”

Olena Mushtenko, chefe da linha verde­ do metrô da Ucrânia, pensou que iria para o Mar Vermelho para umas férias de mergulho com snorkel em 27 de fevereiro. Em vez disso, mudou-se para um bunker subterrâneo na estação Dorohozhichi e tentava arranjar comida e colchões para dezenas de milhares que dormiam ao longo de sua linha. Hoje, ela é tão destemida diante da lama nas ruas do inverno quanto pelos ataques russos, aparecendo para uma entrevista com botas brancas imaculadas e saia longa branca. “É claro que o metrô foi originalmente projetado para servir como abrigo antiaéreo, as estações têm um poço para abastecimento de água, esgotos, portões de proteção. Mas quando começou, havia cerca de 40 mil abrigados nas estações ao mesmo tempo.”

Com Kiev sob ataque regular novamente e as autoridades alertando para uma possível segunda tentativa de tomar a cidade na primavera, o metrô ainda serve como abrigo vital para milhares de habitantes. Mushtenko passa o tempo livre costurando agasalhos para os soldados no front, preparada para uma longa guerra, mas confiante em como esta terminará. “Mesmo que haja um segundo ataque, acho que ficaremos bem. Isso vai durar muito tempo e pode não ser fácil, mas todos sabemos qual será o resultado.”

Se você tivesse chegado ao centro de Kiev no fim da tarde de verão, quando as sirenes antiaéreas haviam misericordiosamente silenciado, a cidade poderia parecer, por um momento, em paz novamente. As mesas do lado de fora dos cafés populares estavam lotadas. Donos de cães passeavam com seus animais de estimação por parques exuberantes, onde as crianças corriam em playgrounds. Foi a mais fugaz das ilusões. Ao virar uma esquina, uma estátua envolta por sacos de areia lembrou a sempre presente ameaça de ataques aéreos. Os dados demográficos estavam todos errados: muitas crianças partiram para o oeste da Ucrânia ou para outros lugares da Europa.

“Parece um país estrangeiro para mim, é lindo”, descreve Victor Havryliak, refugiado de Kherson

No Beatnik Bar, perto de três quartos dos clientes falavam russo antes da guerra. “Agora, ao menos a metade, talvez mais, de nossos clientes usam o ucraniano”, estima Novoseltsev. De alguma forma, apesar do toque de recolher e da interrupção causada pela guerra no fornecimento de gelo e álcool, que a equipe tem vergonha de mencionar, eles chegaram à lista global de prêmios “50 melhores descobertas” de restaurantes e bares.

Seu sonho antes da guerra era fazer parte da lista geral dos 50 melhores e, como muitos em Kiev, eles continuam em uma realidade dividida. Os habitantes tentam apegar-se aos sonhos profissionais que perseguiram por anos ou décadas. Vivem, no entanto, com o poder que vai e vem, amigos na linha de frente, entes queridos em áreas ocupadas, a teia cada vez maior de perda e tristeza tecida pela guerra, que os força a viver no presente, esperando por um futuro pelo qual não podem trabalhar.

A equipe do Beatnik vem de áreas dentro ou perto da cidade oriental de ­Kharkiv, controladas pelos russos ou fortemente disputadas, então a guerra lança uma sombra longa e constante. O pai de Novoseltsev morreu em julho de câncer, quando sua aldeia natal foi ocupada pelos russos, e seu único filho não pôde se despedir pessoalmente. Sua mãe se recusou a deixar a aldeia quando os combates se aproximaram, em setembro. “Eu ligava para ela e perguntava: ‘Por que você está aí, está protegendo o jardim? Não faz o menor sentido’. Ela apenas disse: ‘Vou pensar nisso’.” Depois que a cobertura do telefone celular foi cortada e ele não ouviu falar dela durante cinco dias, Igor partiu e atravessou um inferno para procurá-la.

Um soldado amigo foi com ele e lhe emprestou uma armadura corporal. Sua pacata vila agora era a linha de frente. Ele encontrou sua mãe num campo de evacuação e a trouxe para casa. “Sou um homem de 31 anos morando com minha mãe”, diz ele com um sorriso. Não é a vida glamourosa de um mixologista de ponta, mas ­Novoseltsev está feliz, ao menos por enquanto. “Está tudo bem, nós descobrimos como levar as coisas. Ela é minha mãe, só tenho ela agora e ela só tem a mim.” •


*Colaborou Artem Mazhulin.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1243 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lar, amargo lar “

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