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Como o colapso na saúde levou milhares às ruas no Paraguai

Perto da tragédia brasileira, os números da crise paraguaia parecem pequenos. Mas revelam um paulatino e contundente fracasso do governo

Manifestante com máscara de Dali da série espanhola de sucesso da Netflix, La Casa de Papel, segura bandeira paraguaia durante protesto (Foto: NORBERTO DUARTE/AFP)
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Por Gustavo Magnani, de Salto del Guairá

Na manhã do dia 5 de março de 2021, o presidente paraguaio Mario Abdo Benítez teve uma reunião com Julio Mazzoleni, então ministro da Saúde. No dia anterior, o Paraguai registrara 1.439 casos da doença, um recorde desde o início da pandemia.

Em meio à falta de leitos de UTI e vacinas e a abundância de indícios de corrupção, o ministro se demitiu. Na ocasião, Mazzoleni disse: “Concordamos juntos em eu sair para proporcionar a paz de que precisamos para enfrentar esse desafio”. Ao contrário do que o governo imaginava, contudo, sua degola não arrefeceu os ânimos. Naquela mesma noite, 5.000 paraguaios foram às ruas da capital Assunção e de outras cidades pedindo a cabeça do presidente Benítez. Outros quatro ministros já caíram. Convocadas pela internet e sem líderes conhecidos, as manifestações tem ocorrido há dias e ameaçam a continuidade do governo de Benítez, um aliado do presidente Jair Bolsonaro. 

O locutor de rádio Adrián Bellassai esteve nas ruas desde o dia um dos protestos. Segundo ele, mais a pessoas teriam se juntado à manifestação, não fosse a violenta reação da polícia à “dez encapuzados” que provocaram os oficiais. “A manifestação foi pacífica, iam avôs, via-se filhos no colo, famílias… A polícia começou a violentar a todos. Aproveitaram este ato de violência para dispersar os manifestantes, para evitar que mais pessoas chegassem e tivessem 10, 15, 20 mil pessoas.

Um manifestante segura uma placa com os dizeres “Se minha mãe reclamar que eu não faço nada, posso imaginar a mãe de Marito” durante um protesto exigindo a renúncia do presidente paraguaio Mario Abdo Benitez (Foto: NORBERTO DUARTE/AFP)

A repressão não foi suficiente para conter os manifestantes, e teve o efeito contrário. “isso despertou ainda mais a raiva das pessoas, que responderam com violência, até que a polícia terminou se rendendo”, completa o comunicador paraguaio. A polícia paraguaia acenou com a bandeira branca e se rendeu.

Os paraguaios não exigem apenas pela saída do presidente, mas também uma urgente melhora no combate à pademia, principalmente, no que corresponde à vacina. Para compreender, em detalhes, o que os levou às ruas, é necessário entender como o país deixou de ser o modelo latinoamericano de combate à pandemia e se tornou o epicentro da instabilidade político-sanitária na região – instabilidade, aliás, que tem incomodado o Palácio do Planalto.

Bolsonaro faz a passagem formal da presidência do Mercosul ao presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez (Foto: Alan Santos/PR)

O início da crise

No dia 11 de março de 2020, antes de vários países do mundo, Abdo Benítez decretou uma rígida quarentena no Paraguai. Uma semana depois, no dia 18, fechou a fronteira com o Brasil.

Para efeito de comparação, no dia 25 daquele mês, o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento comparando a doença a uma “gripezinha” e se vangloriando de se suposto “histórico de atleta”. As primeiras tentativas de lockdown viria quase dois meses depois, em maio, no Pará e no Mato Grosso do Sul.

O comerciante Tiago Antonio de Oliveira, dono de um restaurante no centro da capital paraguaia, a três quadras do Palácio do Governo e da Câmara de Deputados, paralisou as atividades no dia 10 de março. Segundo ele, a população compreendeu as razões do fechamento: “O povo fez a sua parte, ficou em casa e respeitou as medidas”, disse a CartaCapital.

Sua empresa manteve as portas fechadas por quase dois meses, sem nenhuma ajuda do governo. O governo ofereceu 500.000 guaranis (o equivalente a 440 reais) para a população mais vulnerável. O congresso aprovou, em três dias, um empréstimo de 1 bilhão e 600 milhões de dólares para conter a crise do coronavírus. Desse montante, 514 milhões foram entregues ao Ministério da Saúde.

À época, a popularidade do ministro Mazzoleni disparou e sua autoridade era plenamente reconhecida. Como, então, tudo se transformou no caos atual? A resposta completa de Tiago à reportagem indica:

“Mas, o governo não fez a sua [parte], agora os hospitais estão em colapso e [tem] gente morrendo nos corredores por não ter nem respiradores.”

O primeiro grande fracasso

Há um ponto em comum na fala de todos os entrevistados: a terrível gestão financeira do orçamento da saúde. Todos citaram, como estopim da crise, a compra de péssimos materiais relacionados à saúde.

Doutor Enrique Bellassai (que não possui nenhum parentesco com Adrián Bellassai), médico cirurgião formado na Universidade Nacional de Asunción, e ex-diretor Geral do Centro de Emergências Médicas paraguaio afirmou à CartaCapital:

“Tudo começou com o primeiro lote de insumos de proteção e artigos de uso hospitalar que vieram da China. Esses insumos não possuíam as características mínimas de qualidade e a forma com que foram adquiridos, favorecia empresas vinculadas ao partido do governo, o Partido Colorado”.

Para o azar dos paraguaios, aquele seria apenas o primeiro grande fracasso.

Falta de planejamento e total descaso

Entre setembro e outubro, o governo começou a relaxar restrições. Comércios, restaurantes, festas, viagens e até a fronteira com o Brasil foi reaberta, para a alegria de muitos empresários. Inclusive, brasileiros que possuem lojas nas cidades fronteiriças.

Nesse momento, o auxílio emergencial paraguaio mostrou-se insuficiente. Celebrado pelo presidente como um sucesso retumbante, o pagamento de 500.000 guaranís teria alcançado 1,5 milhão de paraguaios, quase 21% da população do país. Mas, a afirmação é contestada por diferentes agentes, que questionam também a quantidade de pagamentos efetuados. Alguns cidadãos receberam três parcelas, outros, duas ou apenas uma.

O comerciante Tiago, por exemplo, não recebeu nenhuma: “O governo ofereceu empréstimos com requisitos absurdos, ao qual a gente e muitos outros comércios não conseguiram aderir”, disse à reportagem.

Nesse período, muitas famílias paraguaias precisaram contar com a ajuda de amigos, vizinhos, igrejas ou ONGs. A necessidade de sair para conseguir sustento, a fadiga das medidas restritivas e a falta de ajuda do governo, além da enorme desigualdade social, os fizeram, pouco a pouco, deixar o confinamento.

“Com o relaxamento das medidas, foram aumentando paulatinamente os casos de infectados e mortos e as pessoas percebiam, cada vez mais, a falta de medicamentos básicos, o que obrigava familiares e pagar de seus bolsos medicamentos que custavam 3 milhões de guaranis (equivalente a 2.650 R$)”, diz o doutor Bellassai.

“Medicamentos que não se conseguiam em hospitais e que eram comprados em farmácias privadas. Alguns, inclusive, com a etiqueta do Ministério da Saúde.”

Um desses medicamentos é o Atracúrio, um fármaco bloqueador neuromuscular, usado como parte da anestesia, no momento em que o paciente precisa ser entubado. Sem ele, o corpo irá lutar contra o respirador, atrapalhando a intubação. Como a crise em Manaus, quando cidadãoes precisaram adquirir respiradores por conta própria, o drama paraguaio também ganhou destaque na imprensa e na internet, gerando comoção nacional.

O governo paraguaio teve sete meses (de março até outubro) quando manteve um lockdown rígido e efetivo, para preparar a infraestrutura dos hospitais, adquirir insumos e capacitar os profissionais.

Nada disso foi feito.

O Paraguai adquiriu apenas 4.000 doses de vacinas, o suficiente para imunizar 2.000 profissionais de saúde

La gota que colma el vaso

No dia primeiro de agosto de 2020, o Paraguai tinha 52 mortos por covid-19. Com o relaxamento das medidas, o País ultrapassou neste março a marca das 3400 mortes. No Brasil, o mortícínio diário está perigosamente próximo do saldo global do país vizinho. Perto da tragédia brasileira, os números do drama paraguaio parecem pequenos. Conversando com eles, percebe-se que essas 3400 mortes são quase um infinito. Não apenas pelos que já partiram, mas também porque não há, no horizonte, o indício de melhora.

O médico Enrique Bellassai usou a seguinte expressão em espanhol: La gota que colma el vaso, que pode ser traduzida como a gota d’água. Ironicamente, apontou, tudo o que faltou e levou a população ao limite foi, quase que literalmente, uma gota: a da vacina.

O Paraguai adquiriu apenas 4.000 doses de vacinas, o suficiente para imunizar apenas 2.000 profissionais de saúde. Recentemente, o Chile doou mais 20.000 doses. Mas, até o presente momento, menos de 0,1% da população paraguaia foi vacinada.

Segundo o site Our World in Data, mantido pela Universidade de Oxford, o Paraguai ocupa a 84º posição de países vacinados pelo mundo, na data do dia 09/03. A grande missão do novo ministro da saúde, Júlio Borba, é fazer o Paraguai galgar posições nesse ranking. Mas, com todo o resto do mundo atrás de vacinas, o trabalho será árduo.

Policiais e militares do Paraguai começaram a aplicar controles noturnos para evitar os contágios, cuja propagação aumentou nos últimos 10 dias, informaram as autoridades de saúde no sábado 13.

Demonstração contra a corrupção, deficiências no sistema de saúde exige a renúncia do presidente paraguaio Mario Abdo Benitez em
Assunção (Foto: NORBERTO DUARTE / AFP)

Na política, um outro mundo

Protestos organizados pela internet que unem pessoas de diferentes ideologias sob uma profunda e generalizada descrença na política tradicional. Camisa da seleção de futebol como símbolo, repressão policial. O brasileiro viu esse filme em 2013. Naquele ano, o Paraguai elegia Horácio Cartes, um megaempresário sem experiência prévia na política. Cartes vencia pelo Partido Colorado, força hegemônica da política paraguaia,

Cinco anos depois, em 2018, os paraguarios respondeu com protestos e violência à tentativa de Horácio Cartes de se reeleger – a lei permite apenas um mandato de cinco anos. A resposta incisiva repousava sobre o medo de uma nova ditadura. Isto não evitou, contudo, que o povo paraguaio elegesse, logo em seguida, um presidente cuja história está entrelaçada à do tirano Alfredo Stroessner.

Filho do braço direito do ex-ditador, o atual presidente Mario Abdo representa uma outra ala do Partido Colorado, mais conservadora. Quando Stroessner morreu em 2006, foi um dos carregadores do caixão. Ganhou uma eleição apertada, com pouco mais de 90 mil votos.

Mesmo longe do poder, Horácio Cartes possui enorme força dentro do Partido Colorado. Para derrubar Mario Abdo, serão necessário os votos que ele controla no partido. A reforma ministerial parece parece ter dado fôlego ao presidente.

Nos últimos 70 anos, incluída a Era Strossner, os Colorado perderam uma única eleição: em 2008, para o bispo esquersdista Fernando Lugo, apeado do poder em 2012, em meio a um dos mais céleres processos de impeachment já vistos no mundo. Apesar do desgaste, portanto, é improvável que a sigla esteja fora das próximas disputas eleitoriais.

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