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Justiça de classe

De maioria conservadora, a Suprema Corte derruba as cotas para alunos negros nas universidades

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A volta do privilégio. As cotas foram adotadas nos anos 1960, após o assassinato de Martin Luther King. A Suprema Corte agora avaliza o retrocesso – Imagem: iStockphoto
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Por décadas os movimentos conservadores nos Estados Unidos empenharam-se ferozmente em extinguir duas das maiores conquistas do campo liberal no país: o direito ao aborto, estabelecido nos anos 1970, e os programas de admissão com consciência racial adotados nas universidades após o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968. Anos de pressão republicana foram, no entanto, infrutíferos. Até agora. Enquanto representantes do partido no Congresso e no Senado, mandato após mandato, batiam cabeça para levar o plano adiante, a Suprema Corte conseguiu, no intervalo de um ano, derrubar o alicerce destas e de outras políticas públicas progressistas.

Em junho do ano passado, 50 anos de precedentes acabaram sobrepujados da noite para o dia quando a Roe v. Wade foi anulada pelo tribunal. Ao invalidar a decisão histórica, o Judiciário norte-americano pôs fim às proteções nacionais para o direito ao aborto e permitiu aos estados proibirem a prática. Doze meses depois, o mesmo tribunal considerou ilegais os programas universitários de admissão com consciência racial. John Kennedy, em 1961, foi o primeiro presidente a associar a expressão a uma política pública que naquele momento tinha como objetivo melhorar o acesso a empregos, in­de­pen­den­te­men­te do credo, cor ou origem nacional.

Guiado por movimentos dos direitos civis, o programa expandiu seu território, sofisticou-se e tornou-se um pilar na educação superior, compreendido, à época, como uma forma de promover a igualdade racial em um país que pouco tempo antes impunha a segregação.

Os preceitos acadêmicos sucumbiram na quinta-feira 30, quando dois grupos de alunos das universidades Harvard e da Carolina do Norte conseguiram derrubar a prerrogativa das cotas ao apelar para a Suprema Corte. Por 6 a 3 no caso da Carolina do Norte, e 6 a 2 no caso de Harvard, o tribunal entendeu que os programas violam a Cláusula de Igualdade de Proteção da Constituição.

Não é possível de imediato estimar os efeitos da decisão, mas é evidente que se até aqui as universidades eram compostas em sua maioria de estudantes brancos, a sentença deixará as escolas superiores ainda mais embranquecidas, menos diversificadas, intelectualmente padronizadas, aterrando oportunidades para mentes brilhantes desprovidas do benefício do status familiar.

Os jovens norte-americanos candidatam-se às vagas nas universidades a partir de cartas de recomendação escritas geralmente por um professor ou um mentor. Nelas são destacadas as potenciais contribuições do aluno à escola. Mais do que apresentar boas intenções, notas ou desempenhos extraordinários nos esportes, são levadas (altamente) em conta as doações financeiras realizadas pela família do candidato à instituição ou seu histórico escolar ancestral, espécie de admissão herdada, tradição centenária adotada pela vasta maioria das instituições.

O tribunal também derrubou o pacote de 400 bilhões de dólares de perdão das dívidas estudantis

Do corpo estudantil da universidade de Yale a se formar daqui a dois anos, 14% são filhos de ex-alunos. Não é segredo, portanto, que, para ser aprovado em uma faculdade, em especial na Ivy League, o grupo das mais cobiçadas instituições, pesam a favor dos estudantes as credenciais de uma família rica. Um estudo do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica, de 2017, mostra que os alunos que fazem parte do 1% mais rico da renda familiar no ­país têm 77 vezes mais chances de entrar em uma faculdade de elite do que um candidato que compõe os 20% mais pobres.

Ao mostrar seu descontentamento com a decisão da Suprema Corte, o presidente Joe Biden lembrou que, atualmente, para muitas escolas, “as únicas pessoas­ que se beneficiam do sistema são os ricos e os bem relacionados. As probabilidades foram contra os trabalhadores por muito tempo. Embora o talento, a criatividade e o trabalho árduo estejam por toda parte neste país, não há igualdade de oportunidades”. Biden destacou ainda que poucos alunos de famílias de baixa renda, seja nas grandes cidades ou nas comunidades rurais, têm a oportunidade de ir para a faculdade. “A verdade é, todos nós sabemos, que a discriminação ainda existe na América. A discriminação ainda existe na América. A discriminação ainda existe na América”, repetiu por três vezes, e completou: “A decisão da Suprema Corte não muda isso. É um fato simples”.

Não por coincidência, a confiança na Suprema Corte caiu drasticamente. Um levantamento realizado no ano passado pelo Centro de Pesquisa de Assuntos Públicos da Associated Press revelou que apenas 18% dos entrevistados relataram muita confiança no tribunal, uma baixa histórica. Além disso, 36% afirmaram não ter confiança na instituição, a mais alta registrada desde 1973.

No mesmo dia que os programas de admissão com consciência racial foram considerados ilegais, a Corte deu outro golpe nos estudantes ao rejeitar o perdão de empréstimos estudantis avaliado em 400 bilhões de dólares, um dos carros-chefes da campanha de Biden. No Twitter, a jurista Melissa Murray escreveu: “Diga o que quiser sobre Joe Biden, mas ele fez o que prometeu. E foi absolutamente desfeito pela Corte que seu antecessor construiu”. Detalhe: três dos nove magistrados do tribunal foram nomeados por Donald Trump.

Mas como em política nem tudo está perdido, o Partido Democrata tem a missão de fazer do limão uma limonada. No ano passado, poucos meses após a derrubada da Roe v. Wade, Biden assinou um projeto de lei para proteger os direitos do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Naquele momento, democratas e republicanos que defendiam a legislação sabiam que o Congresso precisava agir antes de a Suprema Corte invalidar a medida. Agora, com tantos direitos abatidos, os democratas, se perspicazes, conseguirão mirar nas eleições de 2024, e conquistar os votos daqueles preteridos nas ações da Suprema Corte. O futuro é logo ali, e não precisa ser um retorno ao passado. •

Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.

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