Mundo
Jornada sem fim
Reformas ultraliberais forçam o aumento da carga laboral no mundo, apesar dos efeitos discutíveis
O mundo do trabalho passa por transformações aceleradas, que apontam em direções opostas. Ao mesmo tempo cresce o número de países nos quais as jornadas semanais são encurtadas e também o daqueles em que as horas extras são multiplicadas indefinidamente. De um lado, pesa o argumento de que a redução das horas trabalhadas produz bem-estar e promove uma vida cujo sentido transcende a mera subsistência. De outro, imperam as promessas de que a multiplicação das horas extras gera mais riqueza e maiores salários. Ambos os campos, embora opostos, garantem que seus modelos aumentam a produtividade, por vias distintas.
A redução da jornada ganha fôlego sobretudo nos países em que a organização sindical é forte, e onde os governos de turno são de esquerda. Socialistas, social-democratas, verdes e trabalhistas apoiam e promovem a ideia de que trabalhadores felizes produzem mais, e de que a felicidade é inversamente proporcional às horas trabalhadas. Do lado contrário, governos neoliberais, guiados mais pelos sindicatos patronais e pelo mercado do que por considerações de cunho social, acreditam que cada empregado tem o “direito” de decidir por conta própria quantas horas de seu dia quer dedicar ao trabalho.
Essa ideia de liberdade total nas negociações aparece normalmente em “períodos de crise econômica”, afirma Antônio Megale, sócio do escritório de direito trabalhista LBS e integrante do Instituto Lavoro, que pesquisa relações de trabalho e direitos sociais no mundo. É nessas horas que, segundo ele, “os direitos de quem trabalha são flexibilizados por meio das chamadas reformas trabalhistas, que resultam na prática em redução de direitos e enfraquecimento da proteção social, sob o argumento falacioso de estimular a economia e criar empregos”.
Na Argentina, a deputada Romina Diez, do mesmo partido do presidente Javier Milei, o Liberdade Avança, propôs a ampliação da jornada diária de 8 para 12 horas, com a justificativa de incorporar 8 milhões de trabalhadores atualmente marginalizados no mercado informal e, com isso, aumentar a arrecadação tributária de um governo obrigado a pedir socorro aos Estados Unidos para conseguir fechar as contas. Além da multiplicação das horas extras, o projeto de Diez prevê a possibilidade de o empregador pagar uma parcela maior do salário com vale-refeição ou cestas básicas, além de acabar com a obrigatoriedade da contribuição sindical e de autorizar o parcelamento de multas trabalhistas em até 12 vezes.
Na Grécia, a situação é parecida. O país europeu passou por uma megacrise financeira em 2010 e, desde então, impõe pesado arrocho à própria população para se enquadrar nas exigências dos empréstimos devidos à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional. Lá, a legislação passou a permitir, desde 2024, a escala de seis dias semanais, com jornadas diárias de 8 horas. Mas a atual ministra do Trabalho, Niki Kerameos, defende que trabalhadores e empregados possam negociar jornadas de até 13 horas diárias. “A ampliação da jornada surge como resposta de curto prazo a crises estruturais, mas sem analisar e sem pensar em antídotos contra as suas causas: a desigualdade, a informalidade e a concentração de renda”, diz Megale.
Grécia, Japão e Argentina, entre outros, propuseram elevação das horas trabalhadas
No Japão, a nova primeira-ministra, Takaichi Sanae, que assumiu em outubro como a mais nova estrela do liberalismo local, pediu a seu ministro da Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social, Ueno Kinichiro, que apresente uma proposta de flexibilização da jornada laboral. Os japoneses não tinham nenhum limite para horas extras, até 2019, quando o então premier Shinzo Abe fixou o teto de 45 horas semanais, com brechas para limites de até 100 horas em casos especiais. A reforma de Abe, considerada civilizadora à época, corre agora o risco de cair por terra, sob o argumento patronal de tornar a economia mais competitiva. Os japoneses olham certamente para o caso da Coreia do Sul, onde, em 2023, o então primeiro-ministro, Yoon Sul-yeol, aumentou de 52 horas para 69 horas a jornada semanal, abrindo a possibilidade de intercalar turnos intensivos com folgas mais longas.
João Victor Figueiredo Soares, advogado no escritório LBS, fez, a pedido de CartaCapital, um levantamento de países que avançam na direção contrária. Reino Unido, Portugal e Alemanha são exemplos em que a produtividade cresceu à medida que as horas trabalhadas diminuíram. Esses experimentos elencados por Soares foram conduzidos por uma organização chamada 4 Day Week Global (Semana Laboral de 4 Dias no Mundo, em tradução livre), que, desde 2019, produz, em parceria com empresas, sindicatos, universidades e governos, testes de redução de jornada, com monitoramento de vários indicadores aferíveis.
O maior experimento ocorreu no Reino Unido, em 2022, com 61 empresas e cerca de 2,9 mil trabalhadores. Os britânicos registraram redução de 71% no nível de burnout, queda de 65% nos dias de afastamento por licença médica, aumento de 1,4% na receita média das empresas e mais de 90% de adesão ao modelo proposto, após o fim do experimento.
Portugal fez um laboratório piloto com 21 empresas, entre junho de 2023 e janeiro de 2024, recolhendo avaliação positiva em 95% dos casos. Apesar dos resultados, o atual governo, de centro-direita, acaba de propor a flexibilização das leis trabalhistas, com jornadas de até dez horas diárias. Na Alemanha, o piloto foi feito com 45 empresas, em 2024 e 2025, resultando na diminuição de 60% nas reuniões e no aumento de 25% na adoção de ferramentas digitais que agilizam o trabalho. A Bélgica adotou, em fevereiro de 2022, o meio-termo: o indivíduo pode reduzir os dias trabalhados na semana, redistribuindo as horas em jornadas que não excedam 9,5 horas por dia.
No Brasil, a proposta para acabar com a escala 6×1 está na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados, e deve ganhar impulso com o engajamento do governo Lula, que tem mobilizado parlamentares da base aliada e movimentos sociais para fazer avançar um projeto sobre o tema, que teria tramitação mais rápida que aquela de uma Proposta de Emenda Constitucional. Há forte resistência das entidades patronais, principalmente no comércio e nos serviços. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jornada sem fim’
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