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Jogos vorazes
A China ignora as críticas políticas internacionais e aposta alto no sucesso das Olimpíadas de Inverno


Sediar os Jogos Olímpicos de Inverno durante a pandemia é um verdadeiro teste para o governo chinês e coloca sua capacidade cada vez maior de controle político e de contenção do vírus em rota de colisão com sua sede de prestígio e status internacional. Os Jogos, que começam na sexta-feira 4, são realizados em um momento de críticas ocidentais particularmente intensas à China por abusos aos direitos humanos, da perseguição em massa da etnia uigur em Xinjiang, no extremo oeste, rotulada como genocídio pelos Estados Unidos, e outros grupos, incluídos os tibetanos, ao esmagamento das liberdades civis em Hong Kong.
A China nega abusos de direitos humanos, mas ativistas apelidaram o evento em Pequim de “Jogos do Genocídio”, e potências ocidentais, dos Estados Unidos ao Reino Unido, anunciaram um boicote diplomático à cerimônia de abertura. O grupo de ativistas exilados Congresso Mundial Uigur pediu: “Ninguém deve querer outra Olimpíada como esta”.
Há tão pouca confiança no anfitrião que muitos países disseram a seus atletas para levarem telefones descartáveis, e especialistas em segurança cibernética alertaram que um aplicativo de saúde para atletas olímpicos poderia espioná-los e roubar dados pessoais e de saúde. Outras críticas vieram de ambientalistas que alertam há anos sobre o impacto negativo de sediar os jogos – que exigem grande quantidade de água para criar neve e gelo – em uma área de intensa escassez do líquido.
Pequim abrandou, no entanto, a controvérsia quando sediou os Jogos Olímpicos de Verão em 2008, disse Susan Brownell, da Universidade de Missouri-St. Louis, especialista em esportes chineses e que esteve na China durante aquelas Olimpíadas.
Então, protestos de alto nível perseguiram o revezamento global da tocha olímpica, a repressão violenta a manifestações no Tibete colocaram a opressão chinesa na pauta do noticiário, houve pressão sobre os líderes para faltarem à cerimônia de abertura e ambientalistas alertaram sobre a intensa poluição que encobria Pequim. Depois que a competição começou, o foco mudou para os atletas. O cálculo de Pequim é, sem dúvida, que o mesmo acontecerá este ano. “Neste momento, os jornalistas políticos e investigativos ocupam a primeira página, mas, quando os jogos começarem, serão os jornalistas esportivos”, disse Brownell.
Pequim acredita que os boicotes diplomáticos ficarão em segundo plano
Covid e controle
A Covid poupou convenientemente Pequim de qualquer preocupação com os protestos nas arquibancadas, que teriam sido a arena mais provável para o ativismo político em um país onde as manifestações públicas de cidadãos são efetivamente proibidas.
Haverá um protesto internacional oficial, na forma de boicote diplomático por governos ocidentais, mas é improvável que essas ausências sejam uma grande dor de cabeça para as autoridades de Pequim, ou tenham destaque na cobertura jornalística durante os jogos.
Pressão dos atletas<
A paralisação da participação internacional nos jogos exerceu uma pressão política especial sobre os atletas, agora os únicos com uma plataforma para fazer declarações. “É impossível separar esportes de negócios e política. Mais do que um grande evento esportivo, este também é um evento político”, disse Mark Dreyer, autor de Sporting Superpower: An Insider’s View on China’s Quest to Be the Best (Superpotência Esportiva: A Visão Interna da Luta da China para ser a Melhor).
Rob Koehler, do grupo de defesa de esportistas Global Athlete, disse que aconselhou, com relutância, os competidores a guardar os protestos ou críticas à China para quando terminarem de competir e voltarem para casa. “Esta é a coisa mais difícil e ultrajante que tivemos de dizer, dado o quanto pressionamos para que eles tenham o direito básico à liberdade de expressão”, afirmou.
Inimigo implacável. A variante Ômicron põe em risco o controle da pandemia – Imagem: STR/AFP
Disrupção da Ômicron
Mesmo que a China consiga evitar um protesto inflamatório – ou uma reação inflamatória – nos jogos, o vírus que antes poderia parecer um presente para um governo empenhado em controlar tornou-se mais uma ameaça a uma Olimpíada de sucesso, com a altamente contagiosa variante Ômicron. Se um surto derrubar atletas de alto nível ou diminuir significativamente o número de competidores, poderá começar a prejudicar os eventos.
Pequim anunciou que, ainda antes do início dos jogos, o número de casos na Vila Olímpica saltou de 2 para 19. As infecções entre atletas e dirigentes de equipes superaram aquelas da mídia e “outras partes interessadas” pela primeira vez. Houve interrupção nas provas de classificação depois que atletas testaram positivo. Nos campeonatos de patinação artística nos Estados Unidos, segundo Brownell, alguns atletas desenvolveram Covid entre as competições e apesar de tomarem rígidas precauções. “Eles estavam usando máscaras, mantendo o distanciamento social. A equipe de duplas tinha apenas aulas particulares na pista com o treinador e não se sabia onde eles pegaram a doença. Isso criou um pânico nos próprios campeonatos”, disse Brownell.
Ironicamente, o sucesso da China no controle de variantes anteriores da Covid deixou-a particularmente vulnerável, dizem especialistas em saúde pública. Suas vacinas domésticas são ineficazes contra a Ômicron e, como ainda há poucos casos em um país de mais de 1,4 bilhão de habitantes, quase não há imunidade natural.
Além da China
Esses fatores afetaram a forma como o resto do mundo, ou ao menos o público em mercados como os Estados Unidos, vivenciará os jogos. A emissora NBC mantém seus comentaristas em casa, a milhares de quilômetros de distância.
Restrições à cobertura da mídia nos últimos Jogos Olímpicos de Verão, no Japão, realizados no ano passado após um ano de atraso, diminuíram a experiência de visualização para milhões de fãs que queriam acompanhar de casa. “Meu sentimento pessoal foi de que a cobertura dos Jogos de Tóquio realmente perdeu alguma coisa. Ficou bem claro que eles não investiram a mesma quantia, a cobertura não foi tão brilhante e esteticamente agradável”, disse Brownell.
Internamente, a competição é saudada como outro triunfo de Pequim
Também poderá haver menos promoção. Em um possível sinal de como estas Olimpíadas estão entre as mais polêmicas das últimas décadas, os patrocinadores que pagam quantias enormes para se conectarem aos jogos não ostentam essas ligações no Ocidente como fizeram no período anterior às edições passadas da competição. Durante anos, a China impôs pesadas punições a personalidades do esporte, empresas e gerentes que arriscaram fazer a menor crítica pública à sua política.
Estima-se que um tuíte de 2019 de Daryl Morey, então gerente-geral dos Houston Rockets, a apoiar os protestos pró-democracia em Hong Kong, custou centenas de milhões de dólares à Associação Nacional de Basquete dos EUA depois que ele foi autorizado a permanecer no cargo. Mas os patrocinadores ocidentais estão receosos de ser acusados de favorecer a China. Talvez por estarem entre Pequim e Washington, não houve nenhuma campanha pré-Jogos para estimular o entusiasmo nos EUA da gigante de pagamentos com cartão Visa, da Coca-Cola ou da Procter & Gamble, informou o Wall Street Journal.
Um jogo, dois mundos
A visão dos Jogos de Inverno, entretanto, é drasticamente diferente de fora do país, focada em inflamar o orgulho nacional e usar o evento para aumentar a prática esportiva e expandir a indústria nacional de esportes de inverno. A participação dos cidadãos chineses nos esportes tem aumentado desde os jogos de 2008, disse Shushu Chen, professor de política e gestão esportiva na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, que analisa o impacto dos Jogos de Verão em Pequim e em Londres. Chen observou que, em comparação com Londres, os residentes em Pequim são “ostensivamente mais positivos sobre os efeitos inspiradores dos Jogos Olímpicos, o que talvez possa ser explicado por diferenças socioculturais contextuais entre os dois casos”.
Na China, os jogos são saudados como um triunfo para Pequim e sua capacidade de mobilização contra o vírus e as críticas ocidentais. Internacionalmente, estes jogos poderão ser lembrados de maneira muito diferente. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Jogos vorazes”
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