Mundo

assine e leia

Jogos de guerra

Com diplomacia travada, Rússia e a Otan mobilizam tropas e armamentos nas bordas da Ucrânia

Jogos de guerra
Jogos de guerra
Imagem: Ministério da Defesa da Rússia
Apoie Siga-nos no

A Rússia enviou tropas à fronteira da Ucrânia, a mais de 6,4 mil quilômetros, e anunciou exercícios navais extensos, enquanto intensifica os preparativos para um possível ataque ao país vizinho. As negociações parecem estar num impasse.

Seis navios de transporte russos, com capacidade para tanques de guerra, soldados e outros veículos militares, trafegaram pelo Canal da Mancha a caminho do Mediterrâneo, numa mobilização que poderá reforçar um desembarque anfíbio na costa sul da Ucrânia, caso ­Vladimir Putin ordene um ataque.

A inteligência militar da Ucrânia afirmou que a Rússia contratou mercenários e abastece suas forças substitutas nas regiões de Donetsk e Luhansk com combustível, tanques e artilharia de autopropulsão, em preparação para um potencial crescimento dos combates. E uma grande força militar, incluídos mísseis balísticos de curto alcance Iskander, tropas de elite “Spetsnaz” e baterias antiaéreas, chegou à Bielorrússia via distrito militar leste da Rússia, mobilização extraordinária que, segundo autoridades e analistas ocidentais, pode permitir que Moscou ameace Kiev, a capital ucraniana.

As novas movimentações preocuparam as autoridades dos Estados Unidos. “O que mais nos preocupa é a imagem geral”, disse uma autoridade graduada do Departamento de Estado em uma reunião recente. “É a concentração de 100 mil soldados nas fronteiras da Ucrânia, combinada com as forças em movimento na Bielorrússia durante o fim de semana… esses números vão além, é claro, do que poderíamos esperar em relação a um exercício normal.” As novas forças na Bielorrússia, acrescentou a autoridade, representam uma “capacidade ampliada da Rússia para lançar esse ataque, mais oportunidades, mais vias, mais rotas”.

Lavrov, chanceler russo: “Não posso dizer se estamos no caminho certo ou não”

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que o próprio Putin talvez não saiba o que pretende fazer. Mas as consequências são ou uma liderança imprudente ou preparativos para uma operação em grande escala. “Putin percebeu gradualmente que, se ficar no caminho do estável e previsível, como indicou ­Biden, ele é o perdedor designado”, afirmou Pavel Baev, professor e pesquisador no Instituto de Pesquisas da Paz Oslo e integrante não residente do Brookings Institute. “Alguma coisa tinha de ser feita. Ele entrou nessa escalada de maneira muito acentuada.”

As iniciativas diplomáticas têm sido inconclusivas, embora o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei ­Lavrov, tenha chamado as conversas com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, de “francas e substantivas”. “Não posso dizer se estamos no caminho certo ou não. Compreenderemos isso quando recebermos uma resposta norte-americana em papel para todos os itens de nossas propostas”, disse Lavrov a repórteres em Genebra.

Mas não há planos concretos para um seguimento e os dois lados parecem irreconciliáveis, com o Ministério das Relações Exteriores da Rússia repetindo exigências exageradas de que as forças da Otan deixem todos os países que entraram para a aliança depois de 1997. “O que está acontecendo no lado russo não é realmente diplomacia. É uma combinação de blefe, chantagem e belicismo”, disse Baev durante uma mesa-redonda na sexta-feira 21.

Conforme a mobilização da Rússia se aproxima da conclusão, os EUA e países da Europa intensificaram o apoio militar à Ucrânia. O Reino Unido enviou mais de 2 mil lançadores de armas antitanques leves da próxima geração (NLAW) e mobilizou cerca de 30 soldados de um novo regimento de patrulha como treinadores.

Putin e Biden: a brincadeira é ver quem pisca primeiro – Imagem: Sergei Bobylyov/Sputnik/AFP

A Estônia disse que fornecerá mísseis antitanques Javelin, enquanto a Lituânia e a Letônia enviarão mísseis antiaéreos Stinger. Em uma mudança de posição, a Holanda disse que também estará pronta para fornecer armas defensivas à Ucrânia. E os Estados Unidos informaram que vão aumentar a ajuda e enviar à Ucrânia helicópteros de transporte Mi-17 que originalmente seriam destinados ao Afeganistão.

A decisão de acelerar o envio de armas à Ucrânia reflete um entendimento de que a Rússia poderá lançar um ataque a qualquer momento. “Sabemos que há planos de aumentar essa força em prazo muito curto, e isso dá ao presidente Putin a capacidade, também no curto prazo, de tomar medidas mais agressivas contra a Ucrânia”, disse Blinken. O âmbito de um ataque russo e seu objetivo máximo não estão claros. Alguns analistas sugeriram que a Rússia pode querer anexar formalmente a região de Donbas ou capturar território para conectar a área continental à Crimeia, península ucraniana anexada por Moscou em 2014. Mas outros veem um objetivo maior de Putin: obrigar o governo ucraniano a se submeter às condições do Kremlin, efetivamente restabelecendo uma esfera de influência na Europa Oriental. E essa meta ambiciosa poderia significar que um ataque russo teria de exercer uma pressão extraordinária sobre o governo ucraniano. “Se o objetivo é obrigar a liderança da Ucrânia, então uma invasão terrestre só faz sentido se colocar o país em uma posição mais ameaçada ou insustentável. Nem uma ponte terrestre nem uma operação em Odessa provavelmente alcançariam esse resultado, mas uma ofensiva a Kiev sim”, escreveu Rob Lee, ex-fuzileiro naval norte-americano e bolsista no Programa ­Eurásia do Instituto de Pesquisa sobre Política Externa, em uma análise.

Em última instância, a Rússia quer bloquear a entrada da Ucrânia na Otan, conter a cooperação com as potências ocidentais e inverter a trajetória de Kiev, que se distancia de Moscou. Com essa finalidade, ela tentou colocar a Ucrânia numa posição que forçaria suas defesas e ameaçaria um potencial golpe contra Kiev. A Rússia mobilizou mais de 60 grupos táticos, mais de um terço de toda a força militar disponível, e não parece disposta a deter sua mobilização nas fronteiras.

Os russos parecem estar nos preparativos finais para um ataque. Mesmo que ele não ocorra, dizem analistas, talvez nunca haja um retorno à situação anterior, antes do início da mobilização no ano passado. “Parece-me claro que mesmo que a guerra seja evitada não voltaremos à situação anterior”, disse Angela Stent, diretora emérita do Centro de Estudos Russos, do Leste Europeu e da Eurásia na Universidade ­Georgetown e bolsista pesquisadora no Brookings Institute. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Jogos de guerra”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo