Diversidade

Itália tem primeira atleta transgênero vestindo a camisa da seleção

A velocista Valentina Petrillo vai competir no Campeonato Europeu de Atletismo Paraolímpico na Polônia de 1° a 5 de junho

A atleta italiana Valentina Petrillo. Foto: Reprodução/RFI
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Valentina Petrillo é a primeira atleta transgênero a vestir a camisa da seleção italiana. Ela corre em provas de 100 à 400 metros rasos na categoria feminina. A velocista vai competir no Campeonato Europeu de Atletismo Paraolímpico na Polônia de 1° à 5 de junho. Seu objetivo é a classificação para as Paraolimpíadas de Tóquio 2021.

 

“Para mim é um sonho que se realiza hoje do melhor modo, na categoria feminina. Vestir a camisa da seleção é um grande sinal. É um sinal, da parte das instituições, que Valentina é aceita universalmente. Estou segura de alcançar um grande resultado. Neste sentido, a Itália demonstrou estar à altura da situação, atendeu os meus pedidos como pessoa transgênero, o meu direito de viver como mulher e entre as mulheres” disse a atleta à RFI.

As mulheres tiveram que esperar até 1900 para poder competir nos Jogos Olímpicos, mas os trangênero aguardaram ainda mais tempo. Até 2003 não era possível falar sobre o assunto e os trans não existiam no circuito esportivo competitivo.

O Comitê Olímpico Internacional começou naquele ano para abrir uma minúscula porta para essa problemática de inclusão, mas sob condições muito específicas. Os atletas tinham que se submeter à cirurgia para a mudança de sexo e fazer dois anos de terapia hormonal. Também era preciso apresentar um documento de identidade com a certificação legal de seu gênero masculino ou feminino.

Finalmente em 2016 o COI fez mudanças importantes em suas regras com a colaboração de uma comissão médica presidida pela Dra. Joanna Harper, médica, corredora canadense e mulher transexual.

A obrigatoriedade de intervenção cirúrgica foi abolida, mas a reposição hormonal segue necessária. Atletas nascidos biologicamente com sexo masculino e que se identifiquem como feminino (MtF) devem demonstrar um nível de testosterona abaixo de 10 nanomol por litro (nmol/L) pelo menos um ano antes das competições. Enquanto atletas que fazem a transição do feminino para masculino (FtM) podem competir sem restrições.

De 2003 a 2016, nenhum atleta transgênero participou dos Jogos Olímpicos de inverno ou verão.

“Eu comecei a terapia hormonal em 4 de janeiro de 2019. A partir dai meu corpo se transformou”, conta Valentina. “Em três meses de terapia hormonal perdi quase 12 segundos nos 400 metros. O que é muito para um atleta. Perdi também 2,5 segundos nos 200 metros e quase um segundo nos cem metros. São dados inequívocos. Isso é demonstrado pelos estudos científicos. Eu me baseio nestes estudos e estou dentro destes parâmetros hormonais. Hoje meus parâmetros são de uma mulher biológica graças a terapia hormonal feminina. Mas me trouxe também inconveniências no esporte, porque não corro como antes.”

Mas a questão ainda suscita dúvidas e controvérsias. Por um lado, argumenta-se que os tratamentos hormonais para controle de testosterona podem colocar em risco a saúde de atletas transgêneros. Por outro, existe a polêmica que essas mesmas substâncias não criam igualdade, e que os atletas que fizeram a transição do masculino para o feminino mantêm uma vantagem sobre atletas cisgêneros (indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu).

“Fazer uma terapia hormonal para transição nunca é um percurso simples. É doloroso porque você sabe o que deixa para trás, mas não sabe o que encontrará pela frente”, resume. “Como esportista sofri ainda mais. Eu desejava a terapia hormonal porque precisava me sentir alinhada com a mente e o corpo. Hoje me olho no espelho e me sinto feliz. Embora seja mais lenta, sou feliz.” diz.

Valentina também conta que ainda enfrenta problemas de aceitação como atleta competindo com mulheres. “Não sinto que estou roubando nada a ninguém. Estou no lugar certo concorrendo com as mulheres. Existem preconceitos entre as mulheres e muitas perplexidades inerentes a minha participação na categoria masculina”, desabafa.

“Em 2018, antes de começar meu percurso de transição, eu me coloquei na posição de uma mulher biológica: ‘Valentina, se você fosse uma mulher biológica e tivesse que competir com uma atleta transgênero com seu físico, o que você pensaria?’ Eu fiz várias perguntas a mim mesma, e obtive respostas. Me baseio nos regulamentos. E o regulamento do COI estabelece parâmetros hormonais. Eu me sinto mulher e é justo competir com mulheres”, insiste.

Ela reclama também da curiosidade das pessoas sobre seus órgãos genitais. “Muitos me perguntam se sou operada. Quando respondo que não, me dizem que não sou uma verdadeira mulher. É uma coisa terrível. Não é o que tenho entre as pernas que me faz mulher.”

Deficiência visual 

Desde 14 anos de idade Valentina sofre de deficiência visual, que atualmente está na classe T13. No entanto, compete também com pessoas sem deficiências. Como velocista, venceu 11 títulos na categoria masculina e 6 títulos na feminina.

“Sou paraolímpica e sofro a doença de Stargardt, mas isso não impede competir com pessoas por assim dizer ‘normais’, ou seja, chamadas ‘normodotadas’. Participo das competições da Federação Italiana de Atletismo com pessoas sem deficiência. Em outubro passado venci o Campeonato Master em Arezzo. Sou campeã Master na categoria de 200 metros com não deficientes. Venci o título italiano Master 45″, enumera. “Sou pela integração completa, pela igualdade e inclusão total das pessoas muito além dos rótulos. Acima de tudo somos pessoas”.

Polêmica sobre transfobia no Brasil

Valentina acompanha as notícias sobre o Brasil e lamenta os preconceitos que envolvem atletas transgêneros brasileiras. Entre elas a jogadora de vôlei Tifanny Abreu, da equipe do Bauru/Sesi, que recentemente foi criticada pelo ex-jogador de vôlei Giba.

“Para mim, o Brasil representava e representa uma pátria das pessoas transgêneros. Nunca vou me esquecer que Lea T, filha de Toninho Cerezo, participou da cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio. Foi lindo. Eu pensava que no Brasil não houvesse preconceito. Quando vi Tifanny e todas as críticas contra ela, me senti no seu lugar. Sinto a mesma coisa que ela sente, as mesmas dificuldades, as mesmas acusações que ela enfrenta. É muito difícil. Quero expressar minha grande solidariedade. Ser uma pessoa trans no esporte é muito difícil porque o esporte é competição. O esporte é um ambiente sexista, no qual existem só duas categorias, masculina e feminina”, ressalta.

No entanto, apesar dos percalços, Valentina encontou alguns aliados durante sua transição. “Meu treinador Luca Giacometti me apoiou em um momento muito difícil em 2018, quando decidi fazer a terapia hormonal, e em 2019, por causa da burocracia. Sendo a primeira atleta a fazer este percurso, havia muitos problemas burocráticos”, se recorda. Valentina também contou com a ajuda da UISP (União Italiana Esportes Para Todos), do Comitê Italiano Paraolímpico e da FISPES (Federação Italiana de Esportes Paraolímpicos e Experimentais).

Adeus a Fabrizio

Valentina, 47 anos, até 2018 era Fabrizio. Ela mantém o nome masculino nos documentos. Antes da transição, foi casado e teve um filho.

“Meu filhinho é a minha vida. É o que Fabrizio me deu de presente quando era homem. Meu filho é tudo para mim. Espero que ele seja orgulhoso do pai, mesmo sendo um pai transexual”.

Indagada sobre as recordações de Fabrizio ela responde: “Quando olho Fabrizio sinto muita ternura. Era uma pessoa em dificuldade com a dupla vida. Para ter uma bolsinha rosa esperei mais de 40 anos. A minha angústia era abrir aquele armário e ver minhas roupas masculinas. Vocês não podem imaginar como foi quando joguei todas aquelas roupas fora. Foi belíssimo!”, celebra Valentina.

Filme

A história de Valentina despertou a atenção de um grupo de cineastas italianos. Eles decidiram fazer um filme documentário de 90 minutos sobre a atleta.

O longa-metragem produzido pela Ethnos – Gruppo Trans – Daruma, dirigido por Elisa Mereghetti e Marco Mensa, foi intitulado “5 nanomoli – il sogno olimpico di una donna trans” ( 5 nanomol – o sonho olímpico de uma mulher trans).

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