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Israel em Gaza: retaliação ou vingança?

As mortes de civis palestinos se acumulam e geram críticas até de aliados. Parte da sociedade israelense se tornou a imagem do radicalismo que combatia

Homem palestino carrega as filhas, Shada e Lama al-Ejla, que ficaram feridas em um ataque de um tanque israelense nesta sexta-feira 18
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Em décadas de conflito no Oriente Médio, Israel tomou para si muitas vezes, algumas com razão e outras nem tanto, o posto de dono da superioridade moral no confronto. Desde a ascensão do Hamas, no fim dos anos 1980, essa tarefa ficou mais fácil, afinal, o grupo palestino realizou uma série de atentados ao longo de sua história, é antissemita e contrário à existência de Israel. Nos últimos anos, no entanto, Israel tem visto sua superioridade moral ruir. A atual ofensiva contra o Hamas na Faixa de Gaza tem reforçado essa tendência.

Na quarta-feira 16, um ataque israelense chocou o mundo. Quatro crianças, todas menores de 11 anos e da mesma família, foram mortas por um bombardeio em uma praia da cidade de Gaza. O massacre foi amplamente documentado. A primeira bomba atingiu o local onde as crianças brincavam. A segunda acertou os garotos enquanto eles fugiam, um forte indicativo de que o atirador tinha a intenção de eliminar os alvos.

Essas crianças se juntam às quase 30 mortas por Israel desde 8 de julho, quando teve início a Operação Borda Protetora – a terceira grande ação na Faixa de Gaza nos últimos seis anos. Como em 2008-2009 e em 2012, Israel justifica o ataque como direito à defesa diante do lançamento indiscriminado de foguetes contra cidades israelenses por parte do Hamas e de outros grupos. De fato, este direito existe, mas a grande porcentagem de civis palestinos entre as 230 vítimas fatais registradas até aqui, calculada em 75% pelas Nações Unidas, tem chamado atenção.

Também assusta a quantidade de alvos civis atingidos pelas Forças Armadas israelenses. Na semana passada, nove pessoas foram mortas e outras 15 ficaram feridas quando o bar em que estavam assistindo Argentina x Holanda, semifinal da Copa do Mundo, foi atacado por Israel. No fim de semana, uma associação beneficente para deficientes e uma mesquita foram os alvos. Nesta sexta-feira 18, um hospital foi destruído. Soma-se a isso a nova estratégia israelense de bombardear casas onde estariam militantes do Hamas, uma prática que aumenta os danos colaterais, especialmente em uma área tão densamente populosa como a Faixa de Gaza.

Mesmo diante do fato de o Hamas esconder armamentos em locais não militares, o que configura crime de guerra, as mortes de civis têm gerado muitas críticas a Israel, até por parte de aliados. Na quarta-feira 16, Ron Dermer, embaixador de Israel nos Estados Unidos, reconheceu a imagem de “gigante bem armado e zangado que deixa vítimas inocentes pelo caminho” gerada pela ofensiva. Na quinta-feira 17, o vice-primeiro-ministro do Reino Unido, Nick Clegg, afirmou que a operação israelense “parece deliberadamente desproporcional”. No mesmo dia, a porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Jen Psaki, disse acreditar que “certamente há mais a se fazer” para proteger civis palestinos.

Sozinhas, as mortes de civis já seriam graves o bastante. Ocorre que elas têm sido acompanhadas por um discurso de ódio que costumava ser direcionado a Israel, e não emanar de lá. Juntos, esses dois fatores – a retórica inflamada antipalestinos e as mortes de civis – dão a impressão de que Israel está engajado não em uma represália estratégica e militar, mas em atos de vingança.

O avanço da extrema-direita em Israel

Em recente artigo na revista Foreign Affairs, Barak Mendelsohn relembrou como, nos últimos 45 anos, “forças radicais, messiânicas e xenofóbicas ganharam espaço significativo na disputa pela alma do Estado” de Israel e levaram seu fanatismo do extremo do espectro político para o centro da política israelense.

A influência da extrema-direita foi notória na crise que levou ao atual conflito na Faixa de Gaza. As tensões tiveram início com o sequestro e assassinato de três jovens israelenses na Cisjordânia, crimes atribuídos por Israel a uma célula do Hamas. A procura pelos garotos e o sofrimento dos familiares quando as mortes foram confirmadas levaram a uma impressionante onda de xenofobia.

No início de julho, a deputada Ayelet Shaked, do partido Casa Judaica, compartilhou no Facebook um texto em que chamava crianças palestinas de “pequenas cobras”, pedia a morte das mães palestinas e afirmava que o conflito no Oriente Médio não se trata de uma guerra contra extremistas, mas “entre dois povos”. Após a confirmação da morte dos jovens israelenses, grupos marcharam por Jerusalém cantando “morte aos árabes” e agredindo pessoas na rua. Uma página no Facebook chamada “O Povo de Israel Exige Vingança” atraiu 35 mil pessoas e milhares de comentários racistas antes de ser tirada do ar. A onda de xenofobia culminou, em 2 de julho, com a morte de um adolescente palestino. Ele foi queimado vivo por extremistas israelenses.

Antes da Operação Borda Protetora ser lançada, ministros israelenses sugeriram que a Faixa de Gaza fosse deixada sem combustível, eletricidade, água e luz. Depois do início dos ataques, o ódio continuou a ser destilado. Em 12 de julho, em Tel Aviv, uma manifestação de israelenses contrários à ofensiva na Faixa de Gaza foi reprimida violentamente por uma turba de extremistas de direita, insuflada por um rapper local.

O sucesso da tentativa de desumanizar os palestinos foi verificado pela imprensa internacional. Diversos veículos mostraram como moradores de Sderot, cidade no sul de Israel conhecida por ser alvo frequente dos foguetes do Hamas, assistem ao bombardeio de Gaza como se estivessem em um cinema ao ar livre. Na quinta-feira 17, uma equipe da rede de tevê CNN flagrou israelenses vibrando quando um míssil atingiu um alvo na Faixa de Gaza.

Toda a escalada de ódio não chega a ser surpresa. O atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ascendeu na carreira com os virulentos discursos que fazia nos anos 1990 contra o então premier Yitzhak Rabin, o homem que mais aproximou Israel da paz e que acabou assassinado por um extremista judeu em 1995. Uma vez no poder, Netanyahu se aliou a inúmeros pequenos partidos de extrema-direita, dando força a determinados rabinos que hoje exercem influência até mesmo sobre as Forças Armadas de Israel, antes bastião do secularismo no país.

Essas siglas cresceram e ajudaram a fazer do extremismo uma linha de pensamento mainstream na política israelense, fazendo com que tenha se tornado comum a lógica torpe de que os palestinos como um todo são culpados não apenas pelos foguetes lançados pelos extremistas, mas pela retaliação israelense. O cúmulo deste pensamento foi expressado pelo ministro da Economia de Israel, Naftali Bennett, segundo quem o Hamas está provocando um “autogenocídio” do povo palestino.

Por anos, o conflito Israel-palestinos foi retratado como um entre um país moderno, democrático e aterrorizado por lançamentos de foguetes e atentados feitos por extremistas que celebravam as vítimas civis. A interação entre o Hamas e a direita israelense, uma aliança de loucos que tirou de cena atores moderados dos dois lados, mudou as coisas. Cada vez mais, o foco é a obliteração provocada pelo “gigante bem armado e zangado” a uma minúscula faixa de terra onde habitam, de forma precária, 1,8 milhão de pessoas esquecidas pelo resto da humanidade. Adiciona espanto a isso o fato de uma parte considerável da sociedade israelense (da população aos políticos) ter se tornado a imagem no espelho do radicalismo palestino. Se o objetivo de Israel algum dia é voltar a ser a paz, antes o país precisará reconstruir sua democracia.

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