Mundo

Iraque vive intensos protestos e corre sério risco de desintegração

Emerge um forte sentimento anti-Irã entre os manifestantes, depois de os aiatolás aumentarem sua influência na região

Os iraquianos querem mudanças
Apoie Siga-nos no

O Parlamento do Iraque deu início a um processo para eleger um novo líder, depois que o primeiro-ministro Adel Abdul-Mahdi renunciou em meio a intensos protestos. Seu sucessor terá de lidar com a séria agitação que se espalha e que lançou forças de segurança contra manifestantes há quase dois meses. Há um medo crescente de que o país se desfaça.

As forças de segurança mataram ao menos 45 civis que protestavam na cidade de Nasiriyah, no sul, na quinta-feira 28, em um dos piores incidentes no recente surto de protestos contra o governo. As ações do poder público pretendiam ser uma demonstração de força bruta após o bombardeio do consulado iraniano em Najaf no dia anterior. Esse ataque foi a expressão mais forte até agora do sentimento anti-iraniano pelos manifestantes iraquianos.

Mas a repressão apenas aumentou o ressentimento no centro e no sul do Iraque, e o impasse entre manifestantes de rua contestadores e uma classe política em apuros ficou mais arraigado. Está em jogo agora se o Iraque pós-Saddam Hussein construído pelos Estados Unidos permanece viável 16 anos após a invasão que derrubou o regime do país e redefiniu o equilíbrio de poder na região.

“Quando os americanos saíram, em 2011, pensamos que tivessem restado ao menos algumas estruturas”, disse Bassma Qadhimi, médico em Bagdá. “Então eles começaram a roubar mais do que nunca, e todos desviaram o olhar. Houve algumas eleições em que não importava se você fosse xiita, sunita ou cristão. Parecia bom. Depois tudo se desfez, porque todas as seitas roubaram. Mas, se há algum resultado dos protestos até agora, é que não é a seita, mas a nacionalidade, que os está liderando.”

Desde 2003, o governo do Iraque é dividido conforme linhas sectárias, e suas instituições são usadas como feudos por ministros cuja lealdade a grupos políticos muitas vezes transcende a fidelidade ao Estado. Um resultado foi a corrupção endêmica e o nepotismo no setor público, que saqueou a riqueza do petróleo e deixou muitos iraquianos sem oportunidades. A pilhagem das receitas estatais tem sido o principal motor do movimento de protesto liderado por uma juventude desprivilegiada, mas apoiado por outros setores da sociedade, que em alguns dias viu até 200 mil cidadãos se manifestarem pacificamente em Bagdá e outras cidades.

Toby Dodge, professor de Relações Internacionais na London School of Economics e antigo pesquisador do Iraque, disse que o sistema pós 2003, que incorporou a corrupção no Estado, além do sectarismo e da coerção, começa a desmoronar. O resultado tem sido uma violência crescente. “Uma ordem aproximada foi imposta a esse campo político por um pacto da elite”, escreveu ele no site Sepad, da Universidade de Lancaster. “Os políticos antes exilados que haviam feito tanto na campanha pela remoção de Saddam Hussein foram colocados no poder pelos Estados Unidos.”

Emerge um forte sentimento anti-Irã entre os manifestantes, depois de os aiatolás aumentarem sua influência na região

A The Observer ele acrescentou: “Os fundamentos ideológicos do sistema, a divisão da sociedade iraquiana em comunidades sectárias, declinaram. Ao mesmo tempo, a divisão dos despojos entre as elites dominantes continuou e se tornou cada vez mais pública e aparente, o que deslegitimou ainda mais o sistema. Eles pararam de vê-los como seus defensores e começaram a considerá-los forasteiros saqueadores. Então as elites dominantes tiveram de depender cada vez mais da violência das milícias para reprimir a mobilização contra elas e permanecer no poder. Vimos isso hoje alcançar seu auge”.

Os EUA deixaram a bagunça para trás

Líderes tribais no sul do Iraque, onde se concentrou o mais recente derramamento de sangue, atacaram as forças de segurança após os assassinatos, que eles dizem ter sido dirigidos por autoridades iranianas que desempenharam um papel central na repressão. O Irã, que também tem população de maioria xiita, teve um papel proeminente nos assuntos do Iraque nos anos pós-invasão, especialmente desde que os EUA retiraram suas forças em 2011. O general iraniano Qassem Suleimani tem sido uma figura central na repressão, dirigindo uma reação letal que começou há cerca de um mês.

Ao mesmo tempo, o Irã enfrenta pressão na frente interna e uma revolta no Líbano, onde o braço mais importante de sua projeção externa, o Hezbollah, desempenha um papel vital nos assuntos do país fragilizado. “No Líbano e no Iraque eles estão em pé de guerra”, disse uma autoridade regional que conhece o pensamento iraniano. “Eles podem ser capazes de acalmar as coisas no Líbano, mas no Iraque têm de lidar com as tribos, e é aí que eles vão se confundir.” Essa autoridade acrescenta: “O que foi desencadeado no sul, em particular, é uma briga de sangue, e eles estão culpando o Irã e seus representantes por isso. É um território muito perigoso e inexplorado para Teerã”.

Líderes tribais na província de Dhi Qar exigiram que as forças de segurança e líderes das milícias responsáveis pelas mortes em Nasiriyah fossem responsabilizados. Essa posição acrescenta uma nova camada de complexidade ao impasse, que agora aparece como o mais sério que o Irã enfrentou no Oriente Médio pós-Saddam. “Eles estão convencidos de que os americanos estão por trás disso”, disse a autoridade. “Eu nunca os vi tão irritados quanto agora.”

Os pontos de conflito no país

Os candidatos a substituto de Abdul-Mahdi incluem Hadi al-Ameri, líder das Unidades de Mobilização Popular, formadas depois que o Estado Islâmico invadiu o norte do Iraque e desde então se tornaram uma das instituições mais poderosas do país. O papel de Al-Ameri como líder da organização atrairá, no entanto, inimigos poderosos, entre eles potencialmente o Irã.

O Parlamento iraquiano tem 15 dias para nomear um novo primeiro-ministro, mas no passado os novos líderes só foram nomeados após meses de negociações. O fracasso em alcançar um consenso entre as facções poderá mergulhar o Iraque num abismo. “Se eles fizerem isso, estarão acabados”, afirmou Mahmoud al-Qaisy, metalúrgico no leste de Bagdá. “E nós também. Juro que esses ladrões tiveram seu tempo. Não podemos ir para casa, e eles não podem continuar. Isto é uma revolução.”

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo