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Inquisição tecnológica

Após a polícia acessar conversas privadas no Facebook, mãe e filha são processadas por aborto clandestino

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Imagem: iStockphoto
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A mudança de jurisprudência promovida pela Suprema Corte dos EUA sobre a legalidade do aborto, em junho, também teve impacto sobre a garantia da privacidade. O tema une feministas e ativistas pelos direitos digitais na preocupação com o uso indevido de dados pessoais capturados pelas redes sociais e aplicativos para perseguir gestantes que recorrem a procedimentos clandestinos. Estes temores ganharam materialidade no início de agosto, com a revelação de que a polícia da cidade de Norfolk, no estado de Nebraska, solicitou à Meta, controladora do ­Facebook, do ­Instagram e do WhatsApp, as conversas privadas entre a adolescente Celeste ­Burgess e sua mãe, Jessica ­Burgess, com evidências de que elas planejaram o uso de medicamentos abortivos para interromper uma gravidez indesejada.

As investigações começaram com uma denúncia, sem muitos detalhes, de que ­Celeste abortou após 23 semanas de gestação. Com o auxílio de um rapaz de 22 anos, mãe e filha decidiram enterrar o feto ­numa área rural próxima a Norfolk. Inicialmente, as mulheres foram acusadas de duas contravenções leves – esconder a morte de uma pessoa e dar depoimento falso – e do crime de ocultação ou abandono de cadáver, no fim do mês de abril. O relatório do legista revelou que havia marcas de “ferimentos termais”, a indicar uma tentativa de incinerar o feto que estaria, na verdade, na 28ª semana de gestação. Pressionando Celeste durante o depoimento, um detetive notou que a adolescente precisou checar sua atividade no Facebook para ter certeza da data em que teria abortado. Foi o que motivou o pedido para a Meta repassar informações aos investigadores.

À empresa de Mark Zuckerberg a polícia apresentou, em 7 de julho, um mandado­ de busca dizendo que investigava um caso de cremação e enterro ilegal de cadáver de um infante, levando a empresa a entregar sem resistência mais de 300 megabytes de dados. As conversas entre mãe e filha incluíam, segundo os policiais, menções à compra de remédios para induzir o aborto e referências à “queima de evidências”. De posse desse material, a promotoria acrescentou às acusações iniciais os crimes de indução de aborto ilegal e interrupção da gestação sem médico credenciado. As mulheres se declararam inocentes de todas as acusações, mas Celeste, mesmo sendo menor de idade na época dos fatos, será julgada como adulta.

O caso de Celeste e Jessica Burgess não foi afetado pela decisão da Suprema Corte, que revogou o direito constitucional ao aborto nos EUA, uma vez que aconteceu antes da mudança de jurisprudência. Mas, mesmo antes da decisão judicial, os abortos só eram permitidos até a 24ª semana de gestação, e o feto de Burgess estava na 28ª semana de desenvolvimento.

Apesar disso, o que era protegido pela jurisprudência antiga não era necessariamente o direito a fazer um aborto, mas o direito da mulher à privacidade de tomar a decisão sobre terminar uma gravidez dentro dos limites daquilo que a Corte chamou de “interesse do Estado em resguardar a saúde, preservar os padrões médicos de qualidade e proteger vidas em potencial” em 1973, quando o caso Roe vs. Wade foi julgado. Em 2022, quando muito da vida privada é exposta por escolha própria na internet em troca de engajamento, a ideia de privacidade modificou-se e não é tão claro o quanto o governo deve respeitar a intimidade dos cidadãos.

A empresa promete recorrer de mandados judiciais vagos ou abusivos, mas admite que atende a 88% dos pedidos da Justiça

Corynne McSherry, diretora jurídica da organização pela defesa dos direitos digitais Electronic Frontier ­Foundation, baseada na cidade de São Francisco, afirma que “as empresas geralmente têm de responder a intimações legais, apesar de elas poderem se certificar da sua legalidade e contestá-las se não forem válidas”. Mesmo assim, usuários de redes sociais e aplicativos que coletam informações sensíveis devem se proteger. Em especial nos casos de vigilância do Estado sobre os casos de aborto, recentemente vetados em diversos estados, a entidade recomenda uma série de precauções, incluindo não fazer buscas sobre o assunto usando os mesmos dispositivos ou navegadores empregados para atividades rotineiras, não carregar dispositivos para locais sensíveis e evitar compartilhar muita coisa, principalmente imagens que possam revelar mais que o desejado sobre onde e com quem esteve. A cautela é necessária porque as Big Techs nem sempre agem com os interesses dos seus usuários em mente.

Depois do caso de Burgess, a Meta expandiu a segurança encriptada nas comunicações do Facebook Messenger e garantiu que vai combater os pedidos judiciais que considerar muito gerais ou sem validade, mas também informou ter atendido a 88% dos 59.996 pedidos de entrega de dados feitos pela Justiça norte-americana no segundo semestre de 2021.

Não é apenas o conteúdo de conversas que pode ser sensível. A geolocalização das usuárias pode apresentar evidências suficientes de que a mulher considera interromper uma gestação indesejada, caso seja localizada próximo a clínicas especializadas. Uma clínica virtual que envia medicamentos abortivos para seis estados relatou que a procura cresceu em dez vezes, desde a decisão da Suprema Corte. Os pedidos de consultas em clínicas presenciais também aumentaram, dobrando em alguns casos. Desde a reversão de Roe vs. Wade, surgiram 84 propostas legislativas estaduais para banir o aborto na maioria ou em todos os casos e sete leis foram aprovadas. Apenas uma das propostas prevê, porém, a criminalização da prática para as mulheres e profissionais da saúde.

Para a analista e chefe de relações públicas da Electronic Frontier Foundation, Karen Gullo, seria fundamental que as leis permitissem que as pessoas vissem e apagassem as informações privadas coletadas sem seu consentimento. “Consumidores deveriam poder processar empresas de tecnologia por violações de privacidade,” observa Gullo, acrescentando que “dar aos usuários a habilidade de controlar seus dados e experiências na internet, rejeitando práticas de coleta de dados, é essencial.”

A questão, segundo especialistas, não é que as plataformas devem se posicionar juridicamente ou politicamente em relação às novas leis que proíbem o aborto. Tampouco elas deveriam ignorar ordens judiciais e não fornecer informações para proteger a privacidade de seus usuários. Como aponta McSherry, a solução é mais simples e mais direta. “Não armazene (dados), não guarde essas informações, e a polícia não virá atrás delas. E se o seu modelo de negócios depende de monitoramento agressivo dos seus consumidores, talvez você precise de um novo modelo.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Inquisição tecnológica”

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