Mundo
Inimigo interno
O motim dos mercenários do grupo Wagner dura pouco, mas expõe o desgaste da autoridade de Putin


Durante meses, Yevgeny Prigozhin protestou teatralmente contra os líderes militares da Rússia. Ele criticou o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o comandante em chefe, Valery Gerasimov, e os acusou de amadorismo e incompetência na guerra na Ucrânia. Em um vídeo, Prigozhin culpou Moscou pela morte de soldados de sua unidade mercenária Wagner. Seus corpos estavam empilhados atrás dele. Numa carta, o mercenário desafiou Shoigu a visitar pessoalmente a sangrenta linha de frente ucraniana, onde as tropas Wagner lutam e morrem na cidade oriental de Bakhmut.
A rivalidade Prigozhin-Shoigu parecia ser real. Mas no sistema opaco de Vladimir Putin, mais um tribunal otomano do que um governo de estilo ocidental, era difícil dizer. Há mais de duas décadas, Putin desempenha o papel de árbitro supremo e joga uma facção ambiciosa do Kremlin contra outra.
Era a velha tática de dividir para reinar. Prigozhin havia provado ser um aliado leal, encarregado de tarefas especiais do Estado, incluindo a tentativa de sabotar as eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos. De acordo com uma interpretação, a amarga cruzada pública de Prigozhin contra Shoigu foi autorizada pelo homem no topo.
Os acontecimentos dramáticos do fim de semana sugerem, porém, que tal acordo com o Kremlin, se existiu, está cancelado. Prigozhin exigiu nada menos que a remoção de Shoigu e a substituição de todo o Estado-Maior. Na noite de sábado 24, o dono da milícia Wagner anunciou que iria se retirar da capital russa e retornar à base, a fim de evitar derramamento de sangue.
Anteriormente, uma coluna blindada Wagner havia entrado na Rússia a partir do leste da Ucrânia ocupada, sem encontrar muita oposição. As tropas mercenárias chegaram a tomar edifícios importantes em Rostov-on-Don, sede do comando do distrito militar do sul da Rússia e um importante nó logístico na chamada “operação militar especial” de Moscou. Generais russos em pânico instaram Prigozhin a recuar e cancelar seu “golpe de Estado”. Veículos blindados circularam pelas ruas de Moscou, aparentemente enviados para proteger o Ministério da Defesa e outros centros burocráticos de um possível ataque interno. A polícia construiu barricadas, escavadeiras abriram buracos nas estradas.
A invasão da Ucrânia foi um erro estratégico de grandes proporções
As imagens extraordinárias trouxeram de volta memórias do golpe fracassado no verão de 1991, encenado por radicais da KGB, com o fim de preservar o vacilante poder comunista. A trama se desfez, apressando o fim da União Soviética, meses depois.
A história, tudo indica, repetiu-se. Prigozhin não é um pacifista. Seu manifesto pede à Rússia uma campanha mais vigorosa na Ucrânia, com melhores tomadas de decisão de alto nível, mais honestidade e menos soldados desnecessariamente jogados no “moedor” e sacrificados em ataques mal pensados. Ele acusa Shoigu de encobrir a escala das perdas russas. Também está insatisfeito com os recuos do ano passado, quando o exército russo foi forçado a abandonar a cidade de Kherson, no sul, e a maior parte da região de Kharkiv, no nordeste.
Seja qual for o resultado do drama surpreendente deste fim de semana, Putin parece mais fraco do que em qualquer outro momento desde que se tornou presidente, em 2000. Sua decisão de invadir a Ucrânia provou ser um grande erro estratégico, o maior de sua carreira, e que poderá, mais cedo ou mais tarde, forçá-lo a deixar o poder.
Putin fez um discurso na tevê na manhã de sábado 24, depois de o motim de Prigozhin ter começado. O presidente russo acusou os rebeldes de traição e adotou um regime “antiterror” em Moscou. Apesar de a rebelião ter fracassado rapidamente, as ondas de choque continuarão por meses, alimentarão a instabilidade política e levantarão dúvidas sobre a capacidade de Putin para liderar. Na peça shakespeariana salpicada de corpos da longa presidência de Putin, semelhante a Macbeth, estamos no quinto ato.
Trancos e barrancos. A contraofensiva ucraniana é mais uma peça de propaganda sem pé na realidade – Imagem: Genya Savilov/AFP
Tudo isso levanta possibilidades significativas e intrigantes para a Ucrânia. As forças Wagner estão baseadas nas regiões ocupadas de Luhansk e Donetsk. Alguns deles voltaram à Rússia. Há relatos iniciais de que as tropas ucranianas recuperaram várias ruas destruídas em Bakhmut, onde uma dura batalha durou meses, e tomaram outras posições inimigas perdidas em 2014.
O exército corsário de voluntários e condenados libertos de Prigozhin provou ser uma unidade militar mais disciplinada e capaz do que o exército regular russo. Ele saiu de cena, ao menos por enquanto, e voltou sua atenção para a própria Rússia.
Em junho, a Ucrânia iniciou uma contraofensiva há muito esperada, abastecida por armas e tanques ocidentais. O objetivo é recuperar o corredor de terra que conecta o território ocupado no leste de Donbass com a Crimeia e as partes do sul das províncias de Kherson e Zaporizhzhia. O progresso tem sido lento. Os militares russos minaram campos, construíram trincheiras antitanque e usaram sua superioridade aérea e de artilharia para retardar os avanços ucranianos. Alguns observadores começaram a se perguntar se a guerra caminhava para um impasse, com a atual linha de frente de 960 quilômetros como uma nova fronteira de fato.
A tomada de poder arriscada por Prigozhin muda esses cálculos. Seria tolice desdenhar dos militares russos. Mas as chances de um avanço ucraniano neste verão aumentaram drasticamente. Se o moral da linha de frente russa entrar em colapso e os soldados não estiverem dispostos a lutar, o terreno poderá ser conquistado rapidamente.
O sonho de Putin de capturar toda a Ucrânia e “reuni-la” com a Rússia não se concretizou. Acabou por ser a fantasia de um autocrata: o produto de inteligência pobre, pensamento messiânico e extremo isolamento de Putin durante a pandemia da Covid-19. Agora a Rússia está à beira de um conflito civil, e a vitória sobre Kiev parece mais distante do que nunca.
Prigozhin, líder do Wagner, negou que a intenção fosse derrubar Putin
Atualização: Após um acordo mediado por Aleksander Lukashenko, presidente da Bielorrússia, o Kremlin concedeu anistia a Prigozhin e seu grupo de mercenários. O líder da milícia Wagner foi autorizado a se refugiar no país vizinho, enquanto os recrutas de sua equipe interessados em se incorporar ao exército russo o poderão fazer até 1° de julho, conforme o plano que em boa medida precipitou o motim. Na segunda-feira 26, por livre e espontânea vontade ou forçado pelos termos acertados com Moscou, Prigozhin fez um discurso para minimizar as consequências da revolta: “Não tínhamos o objetivo de derrubar o atual regime e o governo legalmente eleito”, afirmou. “O objetivo da marcha era não permitir a destruição da companhia militar privada Wagner e para responsabilizar os oficiais que, por meio das suas ações não profissionais, cometeram um número massivo de erros. A sociedade exigia-o”.
O Kremlin prepara-se, entretanto, para servir um prato frio de vingança no futuro. Em entrevista ao canal Russia Today, o chanceler Sergei Lavrov anunciou a abertura de investigação para apurar o alegado envolvimento de serviços secretos ocidentais na revolta de sábado. Segundo Lavrov, no domingo 25, a embaixadora dos EUA na Rússia, Lynne Tracy, deu sinais de que Washington não tinha nada a ver com o que aconteceu. “Foi reiterado que os Estados Unidos atribuem tudo o que está a acontecer a assuntos internos da Federação Russa”, disse Lavrov. Joe Biden, presidente norte-americano, apressou-se em afastar a acusação durante um evento na Casa Branca: “Deixamos claro que não estamos envolvidos, não tivemos nada a ver com isso. Fizemos questão de não dar desculpa a Putin para acusar o Ocidente e responsabilizar a Otan”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.
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