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Indígenas lideram revolta popular e fazem presidente do Equador ceder

O presidente ameaçou com uma guinada autoritária, mas cedeu às pressões das ruas. A trégua será definitiva?

Foto: Luis Robay/AFP
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Os 4 milhões de indígenas representam um quarto da população do Equador, mas, durante a longa e conturbada semana de protestos, nenhum outro grupo étnico e social retratou tão bem as angústias, o descontentamento e a fúria de toda uma nação. Eles estiveram na linha de frente dos protestos, armados de paus e pedras, cara a cara com as forças militares instruídas a reprimir as manifestações a qualquer custo. E lideraram, nos gabinetes oficiais, as reuniões intermináveis e tensas em busca de uma solução pacífica. Nas ruas e nos palácios, venceram.

No domingo 13, um dia depois de decretar toque de recolher na capital Quito e ameaçar uma guinada autoritária, o presidente Lenín Moreno cedeu às pressões populares. O governo anunciou a suspensão do decreto que liberava o preço dos combustíveis, cujo efeito imediato foi um aumento de mais de 120% da gasolina e do diesel, motivo central das revoltas que paralisaram o país por 11 dias. Moreno aceitou ainda a mediação da Igreja Católica nas negociações. A Confederação das Nacionalidades Indígenas concordou, por sua vez, em suspender os protestos. “O bem mais valioso que temos é a paz. Eu valorizo a paz como valorizo o sacrifício dos irmãos indígenas”, afirmou o presidente.

A paz cobrou um alto preço. Os protestos deixaram um saldo de sete mortos, cerca de 500 feridos e mais de mil presos. Entre os detidos está Paola Pabón, governadora da província de Pichincha, ao norte, ex-ministra do governo de Rafael Correa e uma das principais críticas de Moreno. “Se há um responsável pelos protestos é o governo, que deu as costas à cidadania ao anunciar essas medidas para satisfazer um acordo com o Fundo Monetário Internacional”, declarou Paola Pabón em meio à convulsão social. “O caos e a instabilidade são obras do regime e do FMI.” 

Eleito com o apoio de Correa, de quem foi vice, com um discurso progressista e pró-minorias (ele usa uma cadeira de rodas desde que levou um tiro durante um assalto em 1998), Moreno precisou de seis meses de mandato para abandonar os antigos aliados. As denúncias de corrupção contra as principais lideranças do grupo político ao qual pertencia – Correa refugiou-se na Bélgica para escapar de uma investigação, enquanto Jorge Glas, vice de Moreno, está preso por, segundo os investigadores, ter aceitado propina da Odebrecht – deram-lhe a chance de abraçar uma agenda ultraliberal e se aproximar dos Estados Unidos. Além de ter abandonado Glas à própria sorte, o presidente equatoriano suspendeu o asilo de Julian Assange, fundador do WikiLeaks, que vivia refugiado na embaixada do país em Londres.

O presidente ameaçou com uma guinada autoritária, mas cedeu às pressões das ruas. A trégua será definitiva?

A mudança política valeu-lhe a pecha de “traidor” entre a base de apoio de Correa, formada pela maioria miserável beneficiada por programas sociais entre 2007 e 2017. A gota d’água foi, no entanto, a piora na economia e nas contas do governo e a solução escolhida para combater os problemas. A espiral da crise levou Moreno a pedir um socorro de 4,2 bilhões de dólares ao FMI. O empréstimo saiu, mas, como de costume, veio acompanhado de uma série de exigências de contenção de despesas, a começar pelo fim do subsídio aos combustíveis – que geraria, calcula o governo, uma economia de 1,3 bilhão de dólares ao ano. Quase 70% dos pobres do país são índios, em geral dedicados à agricultura de subsistência ou a um pequeno comércio. A troca de mercadorias por estradas de péssima qualidade é feita basicamente por caminhões e caminhonetes movidas a diesel, que subiu 123% no dia seguinte ao anúncio do corte dos incentivos federais.

O impacto imediato sobre a renda dos mais pobres e o medo de uma inflação generalizada levaram mais de 20 mil indígenas da região andina e da Floresta Amazônica a se unirem em uma marcha que chegou a Quito na quarta-feira 9. Por cinco dias, a capital tornou-se um campo de batalha a céu aberto, de um lado a massa de manifestantes a se aproximar da Assembleia Nacional e a ocupar o centro histórico, de outro os militares armados de cassetetes, bombas de gás e jatos d’água na tentativa vã e violenta de conter as multidões. Assustado, Moreno transferiu a sede do governo para Guayaquil, a 435 quilômetros ao sul da capital. Circundado por chefes militares, mostrou-se disposto a resistir e, pior, a usar da força “necessária” contra os manifestantes. Antes de os protestos tomarem os contornos de uma guerra civil, o presidente acusou o “ex” Correa e Nicolás Maduro, da Venezuela, de tramarem um golpe. “Essa não é uma manifestação de descontentamento”, afirmou. “Os saques, o vandalismo e a violência demonstram a intenção de romper a ordem democrática.” Maduro ironizou as acusações: “Agora estou pensando qual o próximo governo vou derrubar com o meu bigode. Sou o Super Bigode”.

O aumento da violência obrigou o governo a admitir a realidade – os protestos não eram parte de uma tramoia, mas o resultado do descontentamento dos eleitores. Ao manter o subsídio aos combustíveis e iniciar uma negociação com as lideranças indígenas, Moreno ganha tempo. Será o suficiente para mantê-lo no poder até 2021? A insatisfação popular reavivou a oposição liderada, do exílio, por Correa. O ex-presidente defende a convocação imediata de eleições gerais e a formação de uma Assembleia Constituinte. Moreno ainda conta com o apoio das Forças Armadas e de seu neoaliado, os Estados Unidos. Na América do Sul, a vontade da Casa Branca e os tanques tendem a prevalecer sobre o desejo popular. Os indígenas do Equador mostraram, ao menos, que outra opinião precisa ser levada em conta.

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