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Hungria se aproxima de ditadura ao dar poderes especiais a Orban

Parlamento húngaro aprovou um projeto de lei que permite ao governo legislar por decretos, sob um regime de estado de emergência

O primeiro-ministro ultranacionalista Viktor Orban. Foto: Zoltan Mathe/Pool/AFP
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O primeiro-ministro húngaro, chefe de governo admirado pela família Bolsonaro, deu mais um passo “rumo à ditadura”, “um golpe”, segundo alguns parlamentares de oposição. A lei aprovada hoje no Parlamento húngaro recebeu 137 votos a favor e 53 contra. Além de dar plenos poderes a Orban, o texto também estabelece até cinco anos de prisão para quem espalhar “notícias falsas” sobre o novo coronavírus ou “medidas do governo”.

As novas disposições permitem que o líder húngaro estenda o estado de emergência, em vigor desde 11 de março, indefinidamente, sem precisar de aprovação do Parlamento. Sob o novo regime, o Executivo pode “suspender certas leis por decreto, driblar obrigações estatutárias e introduzir outras medidas extraordinárias”, a fim de garantir “a saúde, segurança pessoal e material dos cidadãos, bem como a economia”.

 

A Hungria, que fechou suas fronteiras para estrangeiros e instituiu medidas de isolamento da população, registrava, nesta segunda-feira 30, 447 casos do novo coronavírus. Quinze pessoas morreram por causa da doença, no país de 9,7 milhões de habitantes.

Contexto institucional fragilizado

“Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para impedir a propagação do vírus. O projeto se encaixa perfeitamente no quadro constitucional húngaro”, defendeu a ministra da Justiça, Judit Varga, na semana passada.

Mas a política implantada por Orban em uma década de poder faz a oposição temer que o líder de 56 anos esteja abusando dos meios excepcionais. Desde 2010, de acordo com muitas organizações independentes, Orban multiplicou os ataques ao Estado de direito, com reformas que enfraqueceram a justiça, restringiram as ações da sociedade civil, amordaçaram a imprensa e o meio artístico.

Para o deputado independente Akos Hadhazy, essa lei também é “uma armadilha para a oposição”, acusada pelo governo de estar “do lado do vírus”. Os opositores da reforma instaram o governo a limitar o estado de emergência a um prazo fixo, como é o caso em outros países da União Europeia. Mas de nada adiantou.

O porta-voz do governo, Zoltan Kovacs, sublinhou que o projeto de lei é limitado à revogação do atual Parlamento e à própria pandemia, que “esperançosamente terminará um dia”, escreveu no Twitter. O Executivo húngaro tem o poder de destituir o Parlamento, o que nem é necessário, já que o Fidesz, partido de Orban, tem maioria de dois terços na assembleia.

ONU preocupada

O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse estar “acompanhando com preocupação” os desdobramentos políticos na Hungria.

O Conselho da Europa, estrutura dedicada à defesa dos direitos humanos, ao desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social no continente, alertou que “um estado de emergência por tempo indefinido e sem controle não pode garantir o respeito pelos princípios fundamentais da democracia”.

A Anistia Internacional criticou uma lei que dá carta branca para Orban e seu governo restringirem ainda mais o respeito aos direitos humanos no país. “Essa não é a maneira de combater a verdadeira crise gerada pela Covid-19”, escreveu a ONG em seu comunicado.

Nove organizações de defesa da imprensa pediram aos líderes da União Europeia que denunciem uma lei “que viola os direitos e liberdades fundamentais da mídia”. Mas a ministra da Justiça húngara refutou os protestos. “Todos esses críticos lutam contra demônios imaginários e não se apegam à realidade”, replicou Varga.

“Eu disse claramente diante das queixas europeias que não tive tempo de discutir questões jurídicas, sem dúvida fascinantes, mas teóricas, quando há vidas a serem salvas”, declarou Orban. No início da epidemia, o primeiro-ministro culpou o papel da imigração na disseminação do vírus, dizendo que foram “principalmente os estrangeiros que introduziram a doença”.

“A Hungria é um caso especial. O que Viktor Orbán está fazendo não pode ser comparado com as medidas tomadas no resto dos países da UE”, alertou na sexta-feira 27 Milan Nic, especialista em Europa Central no Conselho Alemão de Relações Exteriores, com sede em Berlim.

Orban, que já foi um dissidente anticomunista e se converteu ao nacionalismo e ao discurso anti-imigração por puro oportunismo eleitoral, mudou profundamente o cenário político, judicial, constitucional e midiático do país que governa desde abril de 2010. Frequentemente, ele entra em litígio com as instituições europeias, a ONU e representantes da sociedade civil, que criticam a “guinada autoritária”, “violação da democracia” ou “violação do Estado de direito” na Hungria.

“Até agora, o sistema lançado pelo governo do Fidesz era considerado um ‘Estado híbrido’: nem democracia nem ditadura”, disse na semana passada o cientista político e ex-jornalista Paul Lendvai. Mas o especialista, de origem húngara e refugiado na Áustria desde a insurreição de 1956, esmagada pelos soviéticos, teme que os novos poderes transformem o governo da Hungria na primeira “ditadura” europeia.

Para o eurodeputado Othmar Karas, membro dos conservadores austríacos (ÖVP), com este novo “escândalo Orban está seguindo os passos do presidente turco Erdogan”, também acusado de antidemocrático.

O contexto húngaro torna essas exceções legais ainda mais perigosas, estimou o jurista Zoltan Fleck, professor da Universidade Eötvös Lorand de Budapeste. “Em um estado constitucional enfraquecido, poderes excepcionais são sempre muito perigosos”, ponderou o especialista.

No leste da Europa, a Hungria não é o único país criticado por seus desvios autoritários. O governo ultraconservador da Polônia parece determinado a manter as eleições presidenciais de maio e tirar proveito desse período de crise sanitária.

Na semana passada, especialistas das Nações Unidas instaram os Estados a não “abusar” das inúmeras restrições impostas no âmbito da luta contra a propagação da Covid-19 para restringir ainda mais as liberdades civis.

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