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Humilhados e ofendidos

Aliada de primeira hora, a Europa tem sido constantemente desprezada por Trump e sua turma

Humilhados e ofendidos
Humilhados e ofendidos
Amor bandido. Von der Leyen, Macron e Merz oferecem flores e mesuras e recebem em troca socos e pontapés – Imagem: John Thys/AFP
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Nos últimos dias, os canhões norte-americanos não estavam apenas voltados contra Caracas. Em documentos, estratégias e declarações públicas, tanto o governo de Donald Trump quanto os oligarcas das big techs tomaram uma atitude explícita de questionar a Europa, aprofundando um distanciamento entre os dois continentes e ampliando o mal-estar no continente.  No sábado 6, o bilionário Elon Musk iniciou uma ofensiva contra a União Europeia, após o bloco multá-lo em 120 milhões de euros por violar regras digitais. Aos 230 milhões de seguidores, o empresário defendeu o fim da UE, um monstro burocrático que, segundo ele, colocou em xeque a democracia, e comparou a bandeira do bloco aos símbolos nazistas. “A UE deveria ser abolida e a soberania devolvida a cada país, para que os governos possam representar melhor seus povos”, declarou. “Eu amo a Europa, mas não o monstro burocrático que é a UE”, acrescentou em outra publicação.

A multa imposta à plataforma X foi a primeira anunciada pela Comissão Europeia com amparo na Lei de Serviços Digitais sobre conteúdo. A comissão afirmou que a X era culpada por violar a obrigação de transparência. As violações incluem o design enganoso do “selo azul” da plataforma para contas supostamente verificadas e a falha em fornecer acesso a dados públicos para pesquisadores. A X também não foi suficientemente transparente sobre sua publicidade, acrescentou a UE.

Por instantes, as desavenças entre Musk e o governo Trump desapareceram. A Casa Branca imediatamente assumiu as dores da X e saiu em sua defesa. Um dia antes da multa, o tom era de ameaça. “Há rumores de que a Comissão Europeia multará a X em centenas de milhões de dólares por não praticar censura”, escalou o vice-presidente JD Vance. “A UE deveria apoiar a liberdade de expressão, não atacar empresas americanas por bobagens.”

O secretário de Estado, Marco Rubio, em uma publicação na sexta-feira 5 na plataforma, disse que a multa “não é apenas um ataque à X, é um ataque a todas as plataformas de tecnologia estadunidenses e ao povo norte-americano por governos estrangeiros. Os dias de censura aos norte-americanos online acabaram”. Rubio sabe o risco que corre. Se a multa contra a X imposta pelos europeus vingar, as plataformas passarão a ser questionadas em diferentes partes do mundo e o instrumento de poder terá de sofrer uma transformação.

As críticas não foram atos isolados ou apenas um socorro aos bilionários do setor de tecnologia. Elas ocorrem no mesmo momento em que Trump publica a nova estratégia de segurança nacional, acenando para partidos populistas e de extrema-direita na Europa. Trata-se de um choque no sistema, interpretado por diplomatas europeus como um esforço deliberado para enfraquecer o bloco. Ao contrário de versões anteriores da estratégia norte-americana publicada por dezenas de governos, não se trata mais de princípios, ambições e prioridades que norteiam a política externa dos Estados Unidos. Trata-se de uma ruptura com o mundo que conhecíamos e, ao mesmo tempo, um manifesto para um projeto dos EUA radicalmente diferente.

Para a Casa Branca, a UE não defende mais os “valores” ocidentais

Com Trump e não os EUA como protagonista, a estratégia apresenta a proteção de “valores culturais” como requisito fundamental de segurança nacional. Neste ponto, as influências do nacionalismo cristão e dos supremacistas brancos tornam-se mais evidentes. O documento insiste que a “restauração e o revigoramento da saúde espiritual e cultural americana” são pré-requisitos para a segurança no longo prazo e vincula isso a uma América que “valoriza suas glórias passadas e seus heróis”, e é sustentada por um “número crescente de famílias fortes e tradicionais” que criam “crianças saudáveis”. A UE é atacada por não ser um modelo para o Ocidente. Os EUA são retratados como defensores dos chamados valores tradicionais, enquanto a Europa carece de “autoconfiança civilizacional e identidade ocidental”.

O documento denuncia a diversidade, a equidade e a inclusão como fontes de deterioração institucional e um problema de segurança nacional. O argumento não se limita, porém, à política de recursos humanos de empresas, que passaram a ser forçadas a desmontar programas de diversidade no setor privado. A estratégia de equidade é atacada num esforço mais amplo do governo Trump de redefinir coesão cultural, identidade política e até mesmo mudança social.

Mais uma vez, a Europa é alvo de ataques e apontada como incapaz de mostrar liderança política. O texto também especula sobre mudanças demográficas e culturais no continente para colocar em dúvida se os futuros governos compartilharão as visões norte-americanas sobre suas alianças. De forma inédita, ­Washington considera que as divergências políticas com Bruxelas são evidências de uma suposta deriva cultural europeia.

Tudo se dá no momento em que a Europa constata que nem sequer foi chamada a participar da elaboração de um plano de paz entre russos e norte-americanos para definir o futuro da Ucrânia. O abalo ainda acontece depois de a aliança comercial de décadas ser alvo de uma reestruturação inédita, com a imposição de tarifas e a exigência de uma mudança profunda no fluxo de bens e serviços entre os dois lados do Atlântico.

Ao redesenhar as fronteiras da nova ordem internacional, Trump chantageia a Europa, retira o bloco da mesa de negociações sobre seu próprio território, questiona seus valores e, agora, ameaça agir para defender os interesses das plataformas digitais. Há poucas semanas, numa reunião fechada, o presidente da França, ­Emmanuel Macron, alertou que o continente europeu poderia ser alvo de uma traição por parte de Trump no caso da Ucrânia. Ele estava errado. A traição já ocorreu. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Humilhados e ofendidos’

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