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Huevo de serpiente

A meteórica ascensão do Vox, partido de ultradireita prestes a integrar o governo da Espanha

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Reacionários, uni-vos. A legenda, agora terceira força eleitoral, é a voz dos franquistas empedernidos, racistas, misóginos e xenófobos – Imagem: Vox/Espanha
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O provável próximo prefeito de Rascafría, pequena cidade nas montanhas verdes e envoltas em névoa a uma hora ao norte de Madri, dá poucas pistas sobre suas tendências políticas ao citar as prioridades para os próximos meses e anos. Além de auxiliar os setores hoteleiro e pecuário dos quais a economia local depende, ­Óscar Robles quer melhorar a oferta de lazer e cultura para os jovens mal atendidos e reabrir um clube social para os idosos, fechado antes da pandemia de Covid. “Esta campanha tem sido muito honesta, muito realista e muito calma”, diz o dono de uma gráfica, de 59 anos. “Não entramos em discussões ideológicas com ninguém. Tudo tem sido sobre os moradores, os jovens, os velhos, os criadores de gado. Não me importa de que cor você é, se você é um vizinho, estou pronto a ajudá-lo.”

A única evidência inequívoca de sua filiação partidária pode ser vista nos cartazes ainda pendurados nas ruas frias e chuvosas de Rascafría e que mostram seu rosto sorridente ao lado da radiante Rocío Monasterio, líder do Vox na região de Madri. A dupla, e seu partido de extrema-direita, têm muito a sorrir após as eleições municipais e regionais do mês passado na Espanha e na véspera das eleições gerais, em 23 de julho. A campanha silenciosa e local de Robles, travada em total contraste com o tom eleitoral estridente, vituperante e abertamente xenófobo no qual o Vox se especializou, parece destinada a entregar ao partido sua primeira prefeitura na região, se ele conseguir o acordo de outras partes.

Muito mais importante, entretanto, é o fato de o Vox estar prestes a entrar em mais governos regionais e até fazer parte da administração nacional se, como esperado, o tradicional Partido Popular ficar muito aquém da maioria absoluta e for obrigado a confiar no apoio da extrema-direita para assumir o governo. Até agora, o PP não descartou outros acordos com o Vox.

Tal cenário teria sido impensável cinco anos atrás, assim como o fato de o Vox ser hoje o terceiro maior partido no Congresso de 350 assentos da Espanha. Fundado há quase uma década por uma facção desiludida do PP que sentia que a direita tinha ficado mole, o Vox foi descartado por muito tempo como um bando de nostálgicos, excêntricos anacrônicos e inelegíveis. Atos como desfraldar uma enorme bandeira espanhola na rocha de Gibraltar pouco fizeram para dissipar essa impressão, nem os tuítes do então líder do partido na Andaluzia sobre “feminazistas psicopatas” e mulheres feias demais para serem estupradas por gangues.

Tudo começou a mudar, no entanto, seis anos atrás, quando a tentativa fracassada de independência da Catalunha lançou a Espanha em sua pior crise política e territorial em décadas. Segundo Miguel González, jornalista de El País e autor de um livro sobre o partido, intitulado Vox S.A., a Empresa do Patriotismo Espanhol, a explosão de antigas tensões entre o governo regional da Catalunha, pró-independência, e o Estado espanhol despertou uma cepa de nacionalismo há muito adormecida. “Havia um nacionalismo espanhol envergonhado, por ter sido usado por Franco durante a ditadura”, diz. “Esse nacionalismo praticamente só se manifestava durante as partidas de futebol. Mas toda a questão catalã era muito importante, emocional e politicamente. Há muita gente que se sentiu pessoalmente atingida com o que aconteceu na Catalunha, e isso despertou aquele nacionalismo espanhol latente.”

O movimento de independência da Catalunha reacendeu o nacionalismo antes envergonhado

Adicione os fatores sociais, econômicos e demográficos em jogo – envelhecimento da população, medo da imigração, revoluções digitais e de igualdade que fizeram muitos se sentirem deixados para trás – e as condições estavam maduras. Como aponta González, podem-se traçar linhas retas entre as convulsões na Catalunha e a ascensão do Vox. A percepção de que o governo do PP de Mariano Rajoy foi muito brando e lento para reagir ao movimento de independência – e que o partido havia se tornado muito corrupto – também desempenhou um papel.

O maior avanço da legenda até agora ocorreu em março de 2022, quando o PP fechou um acordo com o Vox para governar em coalizão a região de Castela e Leão, no noroeste. O pacto pode ter incomodado o PP – não apenas por causa dos esforços do Vox para definir uma agenda antiaborto na região –, mas deu à extrema-direita as chaves para o poder e aguçou seu apetite por mais.

Enquanto o líder do Vox, Santiago Abascal, espera que seu partido consiga pressionar o homólogo do PP, ­Alberto Núñez Feijóo, para mais governos regionais de coalizão após as eleições do mês passado, seu olhar agora está firme no governo nacional. “O objetivo é entrar no governo espanhol”, diz González. “Abascal quer ser o equivalente do italiano Matteo Salvini. Quer ser vice-primeiro-ministro num governo Feijóo. Toda a estratégia está focada nesse resultado.”

Nas ruas de Rascafría – e em muitas outras aldeias, vilas e cidades – os apoiadores tendem a se concentrar menos em seu radicalismo ideológico do que na perspectiva de romper o duopólio ­PSOE-PP que governa a Espanha nas últimas cinco décadas. Para Romualdo e Luis, dois moradores diante de um café numa das principais ruas da cidade, a recente eleição municipal foi mais sobre serviços locais e investimentos do que um choque de visões políticas radicalmente diferentes. “Aqui é tudo sobre o candidato, não sobre o partido”, diz Romualdo.

Para José Luis García, que tem uma casa em Rascafría há quase 40 anos, grande parte do apelo do Vox está no que ele não é. “Acho que esta cidade foi abandonada nas últimas duas ou três legislaturas”, diz. “Não há nada para as crianças fazerem aqui. Elas ficam nas ruas o dia todo. Sou eleitor do Vox e votarei neles até que me deem um motivo para não fazê-lo. O país está ferrado e eles são a única esperança.”

González se recusa a apostar em um resultado em 23 de julho. “Não descartaria a ascensão de Feijóo à custa do Vox”, diz. “Mas até onde isso vai? O que acontecerá se Feijóo obtiver a maioria absoluta? Então o Vox se tornaria um partido pequeno e irrelevante.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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