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Hong Kong: uma eleição irrelevante tornou-se trunfo para manifestantes

Escolha para o conselho distrital, que ocorre a cada quatro anos, é normalmente um assunto sonolento, com baixa participação. Não agora

Há seis meses os protestos tomam as ruas de Hong Kong. Foto: Dale De La Reya/AFP
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Clarisse Yeung acredita que o caminho para a democracia plena em Hong Kong passará por um parque para cães. Especificamente um parque para cães que ela prometeu construir, se sua coalizão vencesse as eleições locais no domingo 24.

As eleições para o conselho distrital, realizadas em Hong Kong a cada quatro anos, são normalmente um assunto sonolento, com baixa participação, principalmente porque os conselheiros têm poderes e orçamento muito limitados, além da reputação de corrupção.

Mas a votação deste ano tornou-se uma espécie de referendo a respeito do movimento de protesto de quase seis meses, desencadeado pela oposição, a uma lei de extradição que teria arrasado as proteções jurídicas de Hong Kong, mas que se transformou em uma campanha mais ampla em defesa da democracia.

Yeung, jovem artista enérgica, diz que passou quatro anos desanimadores como a única voz de oposição em um conselho de 13 integrantes controlado por representantes pró-Pequim no bairro central de Wan Chai, lutando contra a inércia e a oposição até mesmo a planos modestos para o bairro, como jardins adequados para animais de estimação e melhores ônibus.

Agora ela espera que a onda de indignação movida pelos protestos, que mobilizou eleitores e candidatos, combinada com seu histórico de compromisso com as questões locais, possa mudar os rumos do conselho. “Eu me perguntava se deveria concorrer novamente. É muito pesado ser a única representante pró-democracia em Wan Chai”, disse ela, enquanto fazia campanha na esquina com um grupo de apoiadores, distribuindo folhetos, acariciando cães e conversando com crianças. “Fico feliz que todos esses amigos estejam saindo depois do movimento (de protesto): eles são a minha esperança.” 

A nomeação para os conselhos distritais virou uma espécie de plebiscito a respeito do controle da China

Embora Hong Kong goze de direitos civis como liberdade de reunião e imprensa, seus moradores não escolhem seu líder, ou todos os integrantes de seu Parlamento reduzido, o Conselho Legislativo. A votação para o Conselho Distrital é a única eleição direta.

Pela primeira vez, os candidatos pró-democracia desafiaram cada uma das 452 áreas em disputa e fizeram campanhas coordenadas para não dividir os votos. As campanhas antes individuais estavam cheias de voluntários. Os jovens, em particular, correram para se registrar como eleitores, oferecer seu trabalho em campanhas e até concorrer a cargos.

Yeung aproveitou esse despertar político em toda a cidade para recrutar outros nove candidatos de áreas vizinhas para a plataforma “Empurre Wan Chai”. Eles vão desde uma designer gráfica até a veterana ex-policial Cathy Yau, que renunciou ao cargo em junho, quando o movimento de protesto começou, chocada com a brutalidade de seus colegas.

Foto: Marin Lawie/AFP

Todos foram candidatos iniciantes e muitos decidiram se apresentar apenas nos últimos meses, apesar da ameaça real de violência física. Vários candidatos pró-democracia foram atacados e um deles perdeu a orelha depois de um agressor mordê-lo e esfaquear outros. Um candidato a favor de Pequim também foi esfaqueado.

Os ataques provocaram temores de intimidação de eleitores ou fraude, principalmente depois que as autoridades anunciaram que a polícia de choque vigiaria todos os locais de votação. Como amostra do ambiente febril, o governo enviou um comunicado oficial afirmando que “a votação é secreta”, aparentemente para conter os rumores de que o software de reconhecimento facial poderia ser usado e os eleitores seriam filmados.

“Eu sempre quis entrar na política, eventualmente, depois de me especializar na minha área. Mas fui inspirado pelos protestos e percebi que não podia esperar mais”, disse Louis Mak, analista de dados que desistiu de seu emprego para fazer campanha em tempo integral para a área de Canal Road. “Talvez daqui a quatro ou oito anos não tenhamos mais eleições reais. A China pode tomar medidas contra a sociedade civil. Foi por isso que me candidatei nesta eleição.” 

Bolsos fundos, uma poderosa máquina eleitoral, falta de interesse dos eleitores e uma oposição fragmentada fizeram com que os partidos pró-Pequim controlassem todos os 18 conselhos distritais da cidade, exceto um. Em Wan Chai, os campos de batalha são áreas mínimas, densamente povoadas, e as margens pequenas. Mak diz que seu distrito se resume apenas a alguns quarteirões, onde o vencedor em 2015 foi eleito com mil votos e uma margem de 200. 

Derrota. Carrie Lam, a governadora, não contava com a mobilização popular. Foi um claro recado para Pequim. Foto: Nicolas Asfouri/AFPPolíticos pró-Pequim foram claros sobre as preocupações de que possam ser varridos do poder. Uma das mais proeminentes, a deputada Regina Ip, alertou contra a votação em candidatos pró-democracia em uma coluna no jornal South China Morning Post. “A história de Hong Kong não precisa terminar em tragédia”, disse ela aos leitores.

A vitória da oposição terá pouco efeito político imediato, pois os conselhos são bastante inócuos. A longo prazo poderá, no entanto, mudar ligeiramente o equilíbrio de poder, pois os conselhos distritais têm um papel em eleições complexas para escolher o líder municipal e parte de sua legislatura.

Outro político admitiu os riscos futuros da derrota. “Os conselheiros aqui são os pilares, mantêm o sistema vigente. A perda desse eleitorado significa que algo está realmente errado e problemático em Hong Kong”, disse o advogado Paul Tse, que também ocupa um assento no Conselho Legislativo da cidade. “Parece muito sério, é muito difícil ter tantos habitantes contra o governo.”

A certa altura, havia um medo generalizado de que a votação fosse adiada em meio a distúrbios e tumultos sem precedentes. Mas a China parece ter decidido que isso seria tão provocador em uma cidade que está no limite que a derrota nas urnas seria o menor de dois males. “Não é o tipo certo de clima para uma eleição justa, mas de certa forma estamos constrangidos”, disse Tse.

A China desistiu de adiar a votação. A derrota nas urnas foi considerada o menor dos males no momento

Onde Tse via uma ferida no coração de Hong Kong, entretanto, seu desafiante no próspero distrito de Broadwood – parte da chapa “Empurre Wan Chai” – via esperança. Arthur Yeung, que não tem relação com Clarisse, fez 24 anos na véspera da votação. Ele passou o aniversário em um estande de campanha na rua principal, acenando para os motoristas, atirando panfletos pelas janelas e conversando com aqueles que paravam.

Dawn e seu cachorro Chicco, levando na coleira um distintivo de apoio a Yeung, fizeram campanha ao lado dele durante horas. “Quero apoiar a juventude e a paixão pela mudança”, disse ela.

Yeung sempre desejou disputar um cargo e passou grande parte do último ano em Broadwood organizando atos contra um loteamento impopular, coletando apoio ao projeto de parque para cães de Clarisse – algo fácil em uma área famosa pelos amigos dos cães – e trabalhando em outros projetos de base. Mas até o início dos protestos muitos de seus amigos pensaram que ele estivesse louco. Os conselhos eram amplamente considerados máquinas políticas irrelevantes, incompetentes e interesseiras. Existe até um substituto cantonês para a corrupção – uma lista de iguarias com que os candidatos agradam aos apoiadores para garantir votos. “Há seis meses, me diziam: ‘Por que você não consegue um emprego normal?’”, diz ele com um sorriso irônico. “Hoje, elas dizem: ‘Você é muito inspirador para a nossa geração. Sua missão é muito clara e apaixonada, obrigado por trazer coisas boas para Hong Kong’. É uma mudança muito grande.”

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