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História ameaçada

O conflito na Faixa de Gaza coloca em risco os tesouros arqueológicos da região

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Dedicação em meio a guerras e saques – Imagem: Mohammed Abed/AFP
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Há um debate considerável sobre a origem do nome Gaza. Para alguns etimologistas, a palavra vem de azaz, que significa “forte” nas línguas semíticas. Outros relatos acreditam que derive da palavra persa ganj, ou “tesouro”.

É verdade que você quase não consegue se movimentar em busca de antigos tesouros na pequena faixa bloqueada. Pescadores, agricultores e trabalhadores da construção civil descobrem habitualmente elementos do passado de 5 mil anos durante um dia de trabalho. Em 2013, uma estátua de bronze de Apolo em tamanho natural, de valor incalculável, foi supostamente encontrada no Mediterrâneo por um pescador, que disse ter sentido medo de ter tropeçado num cadáver nos bancos de areia. No ano passado, um agricultor que plantava árvores desencavou um piso de mosaico bizantino de beleza excepcional, com pássaros e animais em cores ainda firmes.

A imagem de Gaza hoje é a de um lugar de guerra e sofrimento. As forças que tornam a vida miserável para a população do enclave de 40 por 12 quilômetros e 2,3 milhões de habitantes também ameaçam sua rica história: itens valiosos podem ser apreendidos pelo Hamas, o grupo militante que controla a Faixa, ou vendidos por contrabandistas a colecionadores no estrangeiro. Há pouco financiamento e equipamento para escavar ou manter adequadamente os locais históricos. Às vezes, eles são danificados nas ofensivas israelenses.

Entretanto, um grupo de arqueólogos e ativistas dedicados está determinado a não deixar que as contribuições de Gaza para a civilização sejam esquecidas, trabalhando arduamente para preservar o passado antigo da área, apesar dos muitos desafios que enfrentam. “Ninguém aqui tem educação formal. Sou basicamente o melhor que temos. Há um pequeno departamento ligado à escola de arquitetura da Universidade Islâmica, mas é só”, diz Fadel al-Atul, principal arqueólogo do enclave.

Um homem magro e bronzeado na casa dos 40 anos, com olhos aguçados, Atul, oriundo do pobre campo de refugiados de Shati, aprendeu a profissão ao longo de 20 anos, trabalhando ao lado de equipes estrangeiras. Sua participação em projetos arqueológicos tem sido inestimável desde 2007, quando Israel e Egito bloquearam a faixa após a tomada de poder pelo Hamas. Durante a visita de The Observer a uma escavação no norte da cidade, Atul e uma dúzia de jovens estagiários suavam sob toldos de lona que davam pouco alívio à umidade de agosto. Um enorme cemitério romano, com cerca de 2 mil anos de idade, foi descoberto no ano passado durante um projeto de construção liderado pelo Egito para substituir casas destruídas na guerra de 2021 entre o Hamas e Israel.

Os trabalhos de escavação no local só começaram em julho, após a liberação de um financiamento da École ­Biblique, instituição arqueológica francesa em ­Jerusalém, e da ONG francesa Première­ Urgence Internationale. Até agora, foram escavadas 127 sepulturas, incluídos dois raros sarcófagos de bronze e restos de flechas e outras armas. “É uma sorte para todos eu ser um nerd”, disse Atul. “Chego aqui às 6 da manhã todos os dias e só saio por volta das 7 da noite. Todos os dias fico entusiasmado com meu trabalho. Não podemos considerar nada disso como garantido… Gaza tem muitos outros problemas urgentes.”

Um grupo de abnegados tenta proteger as descobertas dos bombardeios e dos traficantes

Cidade portuária que ligava o Mediterrâneo às caravanas comerciais que atravessavam os desertos do Sinai e do Neguev, Gaza sempre foi liminar na encruzilhada de civilizações e culturas. Os terrenos, especialmente os espaços para construção, são valiosos, mas há muito mais tesouros arqueológicos à espera de serem descobertos. Egípcios, persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, fatímidas, mamelucos, cruzados e otomanos, todos controlaram Gaza em algum momento. Em 1799, Napoleão fez uma retirada ignóbil pelo enclave após a campanha fracassada para tomar a Palestina, e durante a Primeira Guerra Mundial a cidade, controlada pelos otomanos, foi bombardeada impiedosamente pelos aliados ocidentais. Em um cemitério local, descansam mais de 3 mil soldados da Comunidade Britânica. “Os artefatos são sempre encontrados por acaso”, disse Hiam Bitar, diretora de museus e antiguidades do Ministério do Turismo de Gaza, procurando em sua mesa o que parecia ser uma romã de cerâmica do tamanho de uma mão. “Isto chegou ontem”, disse ela. “Nunca vimos nada parecido, mas achamos que pode ser uma granada antiga da época de Saladino e dos cruzados.”

Os principais obstáculos que os arqueó­logos de Gaza enfrentam são a falta de financiamento e o bloqueio, que dificultam as viagens e as tentativas de importar ferramentas especializadas, mas o trabalho de Bitar e Atul também é obstruído pelas escavações amadoras realizadas por contrabandistas de antiguidades. O salário médio diário na Faixa é de 35 shekels (cerca de 45 reais) e o desemprego está atualmente em 44%. Para muitos, a oportunidade de vender ilegalmente objetos encontrados na costa após tempestades de inverno ou desenterrados durante o trabalho é uma oportunidade financeira a não ser desperdiçada.

Moedas e medalhas são as favoritas dos contrabandistas, pois seu tamanho facilita o transporte, e elas podem ser extremamente valiosas. Um espetacular medalhão de ouro de 294 d.C., com o imperador romano Diocleciano de um lado e o deus Júpiter do outro, foi vendido em Nova York, em janeiro, a um licitante anônimo por 2,3 milhões de dólares (11,4 milhões de reais), valor mais alto já pago por uma moeda imperial romana. Especialistas em Gaza disseram acreditar que seja parte de um pequeno tesouro encontrado no ano passado, mas não podem provar. A lista do leilão dizia que o item era de “origem desconhecida”, assim como muitas peças ilegalmente à venda em todo o mundo.

Um tesouro de moedas raras da época de Alexandre, o Grande, encontrado em Gaza em 2017, foi contrabandeado e encaminhado para casas de leilão no Ocidente. Richard Beale, diretor da empresa britânica Roma Numismatics, declarou-se culpado em Nova York de uma série de acusações relativas a vendas ilegais, incluída a falsificação da proveniência de moedas. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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