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Herói para quem?

Cultuado no Ocidente, Mikhail Gorbachev deixou legado ambíguo para a sociedade russa

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Em tese, Gorbachev imaginava democratizar e não esfacelar a União Soviética - Imagem: Heinz Wieseler/DPA/AFP
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Ultimo líder soviético, res­pon­sável por firmar his­tóricos acordos de re­du­ção do ar­se­nal nuclear com os EUA e encerrar a Guerra Fria sem derramamento de sangue, Mikhail Gorbachev morreu na ­terça-feira 30, aos 91 anos, após prolongada batalha contra uma doença não revelada pelas au­toridades russas. Suas reformas promoveram uma abertura política e econômica sem precedentes, mas não evitaram o colapso da União Soviética, com o reconhecimento da independência de 15 Estados.

Oriundo de uma família de camponeses da cidade russa de Stavropol, Gorbachev conciliou os estudos secundários com o trabalho agrícola, auxiliando o pai na lida com uma colheitadeira. Em 1952, ingressou no Partido Comunista e, três anos mais tarde, graduou-se em Direito pela Universidade de Moscou. Com a experiência adquirida no campo, foi designado para a chefia do departamento de agricultura de Stavropol no início dos anos 1960 e, ao término daquela década, havia chegado ao topo da hierarquia partidária na região. Era uma estrela em ascensão.

Com as bênçãos de Mikhail Suslov e Yuri Andropov, integrantes do ­Politburo, responsável pela implementação das políticas públicas na União Soviética, elegeu-se para o Comitê Central do Partido Comunista em 1971 e passou a atuar em missões diplomáticas no exterior. De volta a Moscou, tornou-se integrante pleno do Politburo e ampliou sua influência a partir de 1982, quando o seu mentor, Andropov, tornou-se secretário-geral do partido. Em pouco tempo, Gorbachev ganhou prestígio entre seus pares com um discurso de combate à corrupção e à ineficiência estatal.

Ao se tornar secretário-geral do Partido Comunista, em 1985, aos 54 anos, o líder buscou revitalizar a gestão da União Soviética, introduzindo algumas liberdades políticas e econômicas. Ao lançar um ambicioso programa de reestruturação da economia, a Perestroika, Gorbachev reconheceu a superioridade tecnológica das potências ocidentais e tentou correr atrás do prejuí­zo. Com a Glasnost, sua política de transparência, a imprensa passou a ter uma liberdade antes inimaginável de criticar o governo, mas isso também encorajou protestos pela independência de várias repúblicas, como Letônia, Lituânia e Estônia.

As reformas introduzidas por ­Gorbachev eram limitadas, não há como negar. O governo soviético passou meses a minimizar os impactos do desastre nuclear de Chernobyl, em 1986, e até hoje há segredos guardados a sete chaves sobre as responsabilidades de agentes estatais na explosão do reator da usina, que provocou a morte imediata de dezenas de trabalhadores e de outros 4 mil habitantes da Ucrânia e países vizinhos, por conta das doenças causadas pela nuvem de material radioativo, segundo estimativas das Nações Unidas. Por outro lado, o líder soviético gastou mais de 40 bilhões de dólares, em valores corrigidos, para conter a radiação liberada no acidente – 200 vezes maior que a soma das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão – e descontaminar a área, o que levou o governo à falência e colaborou para o fim da URSS.

Para muitos, a dissolução da URSS representou um custo comparável à derrota em uma guerra de grandes proporções

Um ano mais tarde, Gorbachev assinou um tratado com o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, para eliminar os estoques de mísseis nucleares de alcance intermediário, o primeiro de vários acordos visando a redução do arsenal das superpotências. O líder soviético também ordenou a retirada das tropas do Afeganistão, em 1989, e não mobilizou tropas para sufocar o movimento pela reunificação da Alemanha, o que levou à Queda do Muro de Berlim em 9 de novembro daquele mesmo ano. Por se abster de usar a força, ao contrário de seus antecessores, que enviaram tanques para esmagar revoltas na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968, Gorbachev acabou agraciado com o Prêmio Nobel da Paz de 1991.

Embora não fosse a sua vontade, todos esses acontecimentos contribuíram para o esfacelamento do império soviético. Os protestos pró-democracia varreram as nações do bloco comunista na Europa Oriental. Sob pressão externa e às voltas com uma grave crise econômica, ele assentiu com a criação de um novo Parlamento bicameral, com eleições diretas de parte de seus representantes. Ao cabo, em 8 de dezembro de 1991, os líderes das três principais repúblicas soviéticas, Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, assinaram um acordo pela dissolução da URSS.

A despeito do prestígio amealhado no Ocidente, pelos movimentos decisivos para o restabelecimento da democracia nas antigas repúblicas soviéticas, ­Gorbachev é visto por ampla parcela da sociedade russa como o principal responsável pelo fim da superpotência e pelos anos terríveis da crise econômica que vieram na esteira da dissolução do bloco comunista. Não por acaso, ao concorrer à presidência da Rússia em 1996, recebeu apenas 0,5% dos votos. Suas reformas tinham como objetivo assegurar a sobrevivência do império, mas não foi isso que aconteceu, observa o historiador Rodrigo Ianhez, especialista em história da União Soviética, formado pela Universidade Estatal de Moscou, onde vive desde 2011.

“A vida entrou em um caos absoluto. Não existe uma analogia possível com o que aconteceu na URSS, um país que não perdeu uma guerra, mas teve uma queda dos índices socioeconômicos comparável à derrota em uma guerra de grandes proporções”, afirma Ianhez. “Estamos falando de uma diminuição da população de cerca de 1 milhão de indivíduos por ano na Rússia, da diminuição em cerca de dez anos na ­expectativa de vida dos homens, de baixa natalidade, de migrações, de ­caos ­econômico, de trabalhadores sem receber salário. O país, que foi durante a Guerra Fria a ­segunda economia do mundo, entrou em um processo de desindustrialização também sem precedentes. Foi uma tragédia econômica e social.”

Essa é a razão de o atual presidente russo, Vladimir Putin, ex-agente da KGB que precisou trabalhar como taxista após o esfacelamento da superpotência, classificar a dissolução do bloco soviético como “a maior catástrofe geopolítica” do século XXI. Por meio do porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, o líder limitou-se a expressar “suas mais profundas condolências” à família e aos amigos de Gorbachev.

Em antigas entrevistas à mídia russa, Putin disse que reverteria o colapso da URSS se pudesse. E há quem veja na recente invasão à Ucrânia uma tentativa de resgatar o antigo poderio da superpotência, ainda que o presidente russo justifique a incursão pelo descumprimento de um acordo de não expansão da Otan, a aliança militar das potências ocidentais, em direção às antigas repúblicas soviéticas. Gorbachev será sepultado no sábado 3 no cemitério Novodevitchi, em Moscou, ao lado da esposa, Raíssa, falecida em 1999. Putin não vai comparecer, alegou problemas de agenda. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Herói para quem?”

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