Mundo
Heil, Trump!
A posse do republicano foi um genuíno espetáculo de extremismo, arrogância, obsolescência e cafonice


Donald Trump e seus principais aliados dissiparam qualquer dúvida durante a longa cerimônia de posse na segunda-feira 20. O republicano fez quatro discursos, nos quais divagou sobre os detalhes do muro na fronteira com o México, soltou frases desconexas, fez piadas sem graça, mas emitiu uma mensagem cristalina ao mundo: os Estados Unidos vão exercer um imperialismo à moda do século XX, estão pouco se lixando para a crise climática, grandes empresas e bilionários estabelecerão uma simbiose com o Estado, e, se houver uma “era de ouro”, como prometeu o novo presidente norte-americano, ela só valerá para fascistas e supremacistas brancos. Minorias e migrantes, ao contrário, serão empurrados às trevas e viverão, no mínimo, quatro anos de pavor e insegurança.
No discurso mais importante e estruturado, durante a cerimônia oficial de posse, Trump desenhou uma nação distópica, posta de joelhos perante o mundo durante o mandato do antecessor Joe Biden, e apresentou-se como um enviado dos céus para salvar o país. Anunciou o decreto de emergência na fronteira com o México para retomar a construção do muro e reforçar imediatamente a fiscalização, prometeu o início de uma caçada implacável a imigrantes sem documentos, em qualquer canto e lugar, definiu a existência de apenas dois gêneros, masculino e feminino, jogou no lixo as políticas de diversidade e evocou a “meritocracia”, além de decidir pela retirada do país tanto da Organização Mundial da Saúde quanto do Acordo de Paris, que estabelece metas de redução das emissões de carbono. Sob Trump, os EUA serão movidos a petróleo, xenofobia e racismo. Drill, baby, drill, disparou, para delírio da plateia de maioria republicana no Capitólio, em uma mostra da disposição de retomar a todo vapor a extração de óleo e gás das reservas.
Embora seja a imagem cuspida e escarrada do poder do 1%, retratado à perfeição em um gabinete integrado por 11 bilionários, Trump, condenado na Justiça e notório caloteiro, explorou no discurso a falsa imagem de impoluto outsider disposto a implodir o sistema. “Por muitos anos”, afirmou, “um establishment radical e corrupto extraiu poder e riqueza de nossos cidadãos, enquanto os pilares de nossa sociedade estavam quebrados e aparentemente em completo abandono.” Em seguida, prometeu: “O futuro é nosso. A nossa era de ouro acaba de começar”.
Em discurso, gestos e decretos, o presidente deixou claro o espírito fascistoide do novo governo
A nova era já tem seus ganhadores, os bilionários das big techs, com assentos privilegiados na cerimônia. Mark Zuckerberg, da Meta, Sundar Pichai, do Google, Tim Cook, da Apple, Jeff Bezos, da Amazon, Shou Zi Chew, do TikTok, Sam Altman, da Open AI, e o indefectível Elon Musk estavam na fila do gargarejo e não se arrependeram da adesão. Algumas das primeiras decisões do novo governo foram feitas sob medida para atender aos interesses dessa turma: menos regulamentação, meio trilhão para o desenvolvimento da Inteligência Artificial, sem interferência estatal, e a promessa de altos investimentos para levar astronautas a Marte – iniciativa que interessa em particular a dois dos neoaliados, Musk e Bezos. Chamado por parte da mídia norte-americana de “copresidente”, dada a crescente influência, o CEO do X e da Tesla era, provavelmente, o convidado mais à vontade na cerimônia. Riu, aplaudiu, discursou, dançou e, escorado em uma desculpa esfarrapada de “entregar o coração ao povo”, fez e repetiu o gesto típico do nazifascismo, o braço erguido e a mão estendida acima da cabeça. Só uma imensa boa vontade, como a demonstrada por algumas associações de judeus, impediu que alguns não vissem o que era óbvio: Musk demonstrou em um só movimento o caráter e a inspiração dos novos inquilinos da Casa Branca. Adendo 1: o bilionário de origem sul-africana colocou o X e parte da sua fortuna a serviço da AfD, partido neonazista alemão, e do Reform UK, agremiação de cunho fascistoide no Reino Unido. A Alemanha vai às urnas em fevereiro e a AfD ocupa neste momento o segundo lugar nas intenções de voto. Adendo 2: em uma reunião de extremistas de direita no dia anterior à posse, da qual participou o deputado Eduardo Bolsonaro, Steve Bannon, o ideólogo do trumpismo, fez um gesto semelhante ao saudar os participantes.
De volta ao Capitólio, ao anunciar que a nova administração transcenderia a primeira, Trump creditou o retorno à Casa Branca a uma espécie de triunfo do Bem contra o Mal e afirmou não se tratar apenas de uma vitória eleitoral, mas de um destino traçado e ungido por Deus. “Há apenas alguns meses, em um lindo campo da Pensilvânia, uma bala assassina atravessou minha orelha. Mas eu senti então, e acredito ainda mais agora, que minha vida foi salva por uma razão. Eu fui salvo por Deus para tornar a América grande novamente”, em referência ao atentado que sofreu em julho do ano passado.
No discurso, lamuriou os supostos percalços e perseguições desde que deixou a Presidência e, após adornar-se da figura de mártir, perdoou em uma simples canetada 1,5 mil condenados pela invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Não só: apesar de prometer uma guerra implacável contra os cartéis de drogas mexicanos, assinou o indulto de Ross Ulbricht, condenado à prisão perpétua por criar e administrar o Silk Road, site de comércio de entorpecentes. “As ações do presidente são um insulto ultrajante ao nosso sistema de Justiça e aos heróis que sofreram cicatrizes físicas e trauma emocional enquanto protegiam o Capitólio, o Congresso e a Constituição. É vergonhoso que o presidente tenha decidido fazer de uma de suas principais prioridades o abandono e a traição de policiais que colocam suas vidas em risco para garantir que a democracia sobrevivesse naquele dia sombrio”, escreveu a ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi em sua conta no X.
Sabujice. Michelle e Eduardo foram ao jantar do sub do sub do sub – Imagem: Redes Sociais
Trump não parou por aí. Ainda na noite da segunda-feira 20, desafiou a Justiça ao assinar outra ordem executiva que adia em 75 dias a suspensão do TikTok. “Os EUA deveriam ter direito a obter metade” da rede social chinesa, disse a repórteres. O republicano também assinou um decreto para pôr fim à cidadania por direito de filhos de imigrantes ilegais nascidos no país. Não será fácil, porém, cumprir essa promessa. No dia seguinte, o procurador-geral de New Jersey, Matthew Platkin, anunciou que 22 estados entraram com processos para barrar a medida. “Este é um ato extremo e sem precedentes, e essa ordem executiva é um ataque ao Estado de Direito. Os presidentes neste país têm amplo poder, mas não são reis. Eles não têm o poder de reescrever unilateralmente a Constituição. Eles não têm o poder de desconsiderar unilateralmente as nossas leis.”
A comunidade LGBTQ+ foi outro alvo. Ao definir a existência de apenas dois gêneros, Trump abriu a porteira para decisões que limitem o direito das minorias. Antes da posse, a Câmara havia se movimentado para proibir mulheres e meninas transgênero de participar de esportes femininos. Na terça-feira 21, durante um sermão na Catedral Nacional, parte do calendário dedicado à posse presidencial, a bispa Mariann Budde pediu ao novo presidente, sentado no primeiro banco ao lado do vice JD Vance, que tivesse “misericórdia das pessoas em nosso país que estão assustadas”. “Há crianças gays, lésbicas, transgênero, famílias democratas, republicanas, independentes, algumas que temem por suas vidas.” O apelo não comoveu o eleito. Mais tarde, Trump declarou-se “constrangido” e exigiu desculpas da missionária.
Em artigo para a revista Time, Chase Strangio, codiretor do Projeto LGBT e HIV da American Civil Liberties Union, escreveu que a comunidade está desolada, pois “não há maneira clara de estar pronto para um mundo onde aqueles no poder desejem sua morte. Mas não temos escolha, a não ser estar prontos para lutar e nós o faremos. No tribunal, nas legislaturas, em nossas comunidades locais. Isso é sobre proteger e defender pessoas transgênero de ataques pontuais e iminentes, mas também é sobre muito mais. Quando um pequeno grupo de pessoas é alvo, os ataques nunca param por aí”.
O troféu “vergonha alheia” vai para a comitiva bolsonarista em Washington
Nota 1: Causou espanto o chapéu usado pela primeira-dama, Melania Trump, que impedia a visão de seu rosto. Alguns se lembraram de Gilead, o país machista e religioso imaginado por Margaret Atwood em O Conto da Aia, símbolo da submissão feminina. Outros, marotos, acreditam que Melania arrumou uma forma de evitar um beijo do marido. Se for isso, conseguiu.
Nota 2: O troféu de vergonha alheia vai para os parlamentares bolsonaristas que foram passear no frio de menos 5 graus em Washington. O destaque especial vai para Eduardo e Michelle Bolsonaro, filho e mulher do ex-presidente. Excluídos da cerimônia de posse e dos principais eventos comemorativos, após toda a mise-en-scène no Brasil, tiveram de se contentar com um jantar secundário. A sabujice não tem preço. •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Heil, Trump!’
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