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Guerra prometida

Israel leva a cabo o plano de reconfigurar o mapa do Oriente Médio

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Imagem: GPO/Israel Forces
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Na guerra de versões, os dois lados declaram-se vitoriosos. Segundo o Irã, 80% dos cerca de 180 mísseis lançados na terça-feira 1° atravessaram o domo de ferro, sistema de defesa aéreo de Israel, e caíram em solo. Há relatos de um morto e dois feridos atingidos pelos estilhaços. ­Israel diz que a maioria dos foguetes iranianos foi interceptada ainda no céu e que, por ora, a população não corre perigo. O ataque ordenado pelo aiatolá Ali Khamenei, em um movimento de “autodefesa”, conforme a descrição do Ministério das Relações Exteriores do país, é mais um passo em direção ao conflito generalizado no Oriente Médio, ameaça a pairar no horizonte desde os assassinatos e sequestros promovidos pelo Hamas em 7 de outubro e a consequente retaliação desproporcional e desumana de Tel-Aviv. Prestes a completar um ano, o conflito alcança outro degrau na escala da violência e da imprevisibilidade. “Enviamos uma mensagem ao lado norte-americano por meio da embaixada da Suíça, sugerindo que não se envolvam na história”, afirmou o ministro iraniano Abbas ­Araghchi, na sequência dos disparos. “Confrontaremos e responderemos a qualquer terceiro que entre em qualquer operação contra nós em apoio ao regime sionista e teremos uma resposta esmagadora.”

De um bunker, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, prometeu revidar. O Irã, afirmou, “cometeu um grande erro e vai pagar por isso. Manteremos a regra: quem nos atacar, nós os atacaremos”. Netanyahu leva uma vantagem incomparável nessa queda de braço. Além de maior poder de fogo, o ­premier conta ainda com o apoio logístico, financeiro e material e a conivência dos Estados Unidos e da Europa. O sistema de dois pesos e duas medidas das potências ocidentais torna improvável qualquer negociação de cessar-fogo. Ao contrário. Os apelos pela paz, ainda que momentânea, foram substituídos pela anuência à violência indiscriminada, sem distinção entre alvos militares e civis. A “legítima defesa” continua a ser a desculpa preferencial, mas todos sabem o que está em jogo: o desejo de Netanyahu de reconfigurar o mapa do Oriente Médio. Nem se trata de uma estratégia recente. Desde 1947, quando o Estado de Israel foi oficialmente criado, todos os grandes conflitos regionais terminaram invariavelmente com a expansão territorial do país, contra as normas internacionais.

Na ONU, Bibi foi claro: faz o que quer, quando quer – Imagem: Charly Triballeau/AFP

Na quarta-feira 2, uma reunião de emergência, mais uma, do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi incapaz de se libertar das amarras impostas por Washington e avançar em uma proposta factível de cessar-fogo. Ciente da fragilidade da ONU, Israel Katz, ministro das Relações Exteriores, aproveitou o momento para tripudiar. A exemplo do que fizeram com o presidente Lula no ano passado, Katz declarou o secretário-geral da organização, António ­Guterres, persona non grata e o proibiu de pisar em solo israelense.

O Ocidente abandona a ladainha do cessar-fogo e adere de vez aos propósitos militares de Netanyahu

O chanceler reafirma assim a diplomacia do porrete, para aplauso dos aliados. Após o presidente norte-americano, Joe Biden, celebrar o assassinato do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, e se declarar “confortável” tanto com os bombardeios incessantes quanto com a invasão do sul do Líbano pelas tropas israelenses – posição aprovada pelos parceiros liliputianos da Europa -, o secretário de Estado, Anthony Blinken, expressou indignação afetada diante do revide iraniano, cujo saldo em termos de danos materiais e vítimas não passa de uma nanofração das perdas infligidas aos libaneses ao longo das últimas semanas. O ataque foi “inaceitável”, afirmou Blinken, “e deveria ser condenado pelo mundo inteiro”. Sem medo de perder votos da comunidade árabe, a candidata democrata à Presidência, Kamala Harris, chamou o Irã de força “perigosa e desestabilizadora”. O presidente francês, Emannuel ­Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, reforçaram o compromisso com a proteção de Israel e mandaram avisos a Teerã. O Reino Unido ressaltou sua participação na intercepção dos mísseis iranianos.

Os houthis, no Iêmen, até agora, ladram, mas não mordem. Famílias inteiras expulsas de casa ocupam as ruas de Beirute – Imagem: Ibrahim Amro/AFP e Osama Abdulrahman/AFP

Nota trágica: segundo relatos das agências de notícias, a única vítima do bombardeio coordenado por Teerã teria sido um trabalhador palestino em Jericó. No Líbano, por sua vez, as mortes decorrentes dos ataques israelenses passam de 1,8 mil e o número de refugiados atingiu a marca de 1 milhão. Nas principais cidades, deslocados acampam em parques públicos, portarias de prédios e vãos de lojas. “É o pior momento pelo qual passamos”, lamentou à rede britânica BBC o prefeito de Beirute, Marwan Abboud. “Sinto-me triste. Estou chocado com o grande número de vítimas civis. Também estou chocado com o silêncio da comunidade internacional, como se o que acontece aqui não significasse nada.” Esquecida nesta nova fase do conflito, ­Gaza sofre em silêncio. Na terça-feira 1°, outros 50 corpos aumentaram a conta dos 40 mil mortos na região.

Enquanto isso, os limites da incursão “limitada” das tropas israelitas sob o comando de Yoav Gallant, ministro da Defesa, no sul do Líbano não param de se expandir. Depois de ordenar a evacuação de 20 cidades, Gallant incluiu outras 24 localidades na lista. Não se deve descartar a hipótese de Israel anexar por tempo indefinido uma parte do território vizinho sob o pretexto de criar uma zona-tampão de segurança, em clara violação, mais uma, do direito internacional. Há dúvidas sobre o real poder de reação do Hezbollah. O grupo armado está desarticulado após o assassinato de suas principais lideranças nas últimas semanas e a perda de comando reflete-se nas ações pontuais de contenção dos invasores na fronteira. Embora a maioria dos integrantes da milícia tenha experiência em combates, ao contrário da resistência palestina, formada por mulheres e crianças armadas com paus e pedras, e a facção supostamente detenha um arsenal de 130 mil foguetes, os tanques israelenses tomaram grandes nacos de territórios como se desfilassem nas passarelas da semana de moda de Milão. Os relatos, esparsos, de resistência soam mais como propaganda interna do Hezbollah, uma maneira de manter coesa a militância.

No Líbano, o número de refugiados passa de 1 milhão, enquanto as tropas israelenses avançam ao sul

A invasão do Líbano, os bombardeios a instalações dos houthis, grupo xiita do Iêmen, e a “ameaça” iraniana deram a oportunidade a Netanyahu de fazer do limão uma limonada. O premier enfrentava a pressão interna para aceitar um cessar-fogo que permitisse a liberação dos reféns em poder do Hamas. Pelas estimativas dos serviços de inteligência, o grupo palestino mantém 71 vivos e 34 cadáveres. Os protestos crescentes contra o primeiro-ministro foram, no entanto, substituídos por declarações generalizadas de apoio. Até as falhas dos serviços de inteligência têm sido minimizadas. Cresce entre os políticos a sensação de que este seria o momento ideal para um confronto direto com o maior inimigo regional. Naftali Bennett, que ocupou a mesma cadeira de Netanyahu, sugeriu um ataque “decisivo” ao Irã. “Devemos agir agora para destruir o programa nuclear do Irã, suas instalações centrais de energia e paralisar fatalmente esse regime terrorista”, escreveu na rede X. “Temos a justificativa. Temos as ferramentas. Agora que o Hezbollah e o Hamas estão paralisados, eles estão expostos.”

Nasrallah, líder do Hezbollah, morreu em um dos bombardeios. Como Lula, Guterres vira persona non grata em Israel – Imagem: Arquivo/AFP e Eskinder Debebe/ONU

Há 17 anos no poder, em mandatos alternados, Netanyahu é o mais longevo primeiro-ministro da história de Israel. Nos últimos 12 meses, Bibi contrariou todas as previsões de declínio e encontrou no massacre dos palestinos e no caos no Oriente Médio os seguros para permanecer na cadeira e adiar o encontro com a Justiça, onde enfrenta acusações de corrupção. A esta altura, os processos nos tribunais israelenses parecem insignificantes diante da limpeza étnica em Gaza. Correm rumores de uma acusação por crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional. O efeito será nulo. Ou pior. Talvez Bibi trate a eventual denúncia de uma Corte cuja jurisdição não reconhece como se recebesse uma medalha de honra. Ao contrário das declarações de Washington, o perigo não vem do Irã. Nas mãos de um político calculista e egocêntrico, amparado por uma extrema-direita a favor da aniquilação dos árabes, repousa o futuro da região. Netanyahu nunca esteve tão forte. E o mundo nunca esteve tão impotente. •

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra prometida’

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